Análise do filme "LINHA DE PASSE" e a vida instável na periferia de São Paulo



O filme Linha de Passe (Brasil/2008), dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, apresenta os principais atores: Sandra Corveloni (Cleusa), João Baldasserini (Denis), Vinícius de Oliveira (Dario), José Geraldo Rodrigues (Dinho) e Kaique de Jesus Santos (Reginaldo).

O filme conta a história de uma família pobre que mora na periferia na Cidade Líder, em São Paulo e revela as desventuras de uma faxineira e seus quatro filhos que buscam um lugar ao sol, ou melhor, um lugar nesta cidade, que excluí o sujeito de baixa renda, como se ele fosse um estranho, um intruso.



Cleusa e seus quatro filhos



A faxineira Cleusa, com muito jogo de cintura tenta criar os seus filhos e espera o quinto filho, de pai desconhecido. Ela tenta manter a família unida, apesar das dificuldades financeiras e afirma que é pai/mãe de seus filhos.

Cleusa está comprometida com a sua família, seus filhos e a nova gravidez. Ela espera que seja uma menina, porque considera este gênero menos complicado que o masculino e também poderá ajudá-la a educar seus filhos “complicados”, diz ela.



Cleusa



Ela representa a sólida e confortadora referência de amor incondicional de mãe, ao mesmo tempo, tenta ser a figura paterna, disciplinadora.

Mas, mesmo sentindo-se solitária, a personagem se reinventa, cria forças e segue em frente. Ela é uma mulher humilde, provavelmente sem instrução (fuma e bebe na condição de grávida), mas verdadeira nas suas intenções.

A personagem não representa a mãe sofredora, é apenas resignada. A sua tragédia se acentua quando ela assume as suas paixões de mulher, de forma que o nascimento dos filhos, sem o acompanhamento do pai redobra suas responsabilidades e dificulta a sua possibilidade de encontrar um emprego melhor, uma vida com mais conforto para os filhos e para ela mesma.

Cleusa representa não somente a mãe e sua devoção ao cenário familiar, ela também representa a força e a coragem, na medida em que ela enfrenta as suas difuldades diárias, sem máscaras ou disfarces, apenas confia em si mesma. As palavras força e coragem, adjetivos tão masculinos, mas agora também podem ser usados para o feminino.

No estádio de futebol ela beija a sua medalha com uma imagem de Nossa Senhora, pendurada no seu pescoço e torce com a “Gaviões da Fiel”. O futebol é a sua alegria, no campo Cleusa reza, ri, xinga e chora. Lá, no meio da multidão ela encontra a si mesma, por meio de sua paixão, que é o Corinthians, time de seu coração.



Cleusa no estádio



Ela se deleita no raro prazer de uma partida de futebol. Ela gosta de assistir a uma partida do Corinthians, ao invés de sair com as amigas para se divertir em algum lugar, o que seria esperado para a categoria de mulher. Ela está atrelada ao princípio da realidade, onde o futebol não é fuga, é um doce remédio.



futebol, um doce remédio



A meu ver, o futebol no Brasil consegue por milagre abarcar toda a diversidade de culturas, onde todos convivem num mesmo espaço físico e com o mesmo objetivo, que é ver o seu time ganhar.

A sua narratividade aberta às diferenças terá relação, muito possivelmente, com o fato de ter se tornado o esporte mais jogado do mundo inteiro, como um modelo racional e universalmente acessível e que fosse guiado por uma ampla margem de diversidade interna, capaz de absorver e expressar culturas, comenta em seu livro José Miguel Wisnik. (WISNIK, 2008, p.14)

A personagem Cleusa é um exemplo e nos permite um novo olhar para o feminino. Quando ela assiste ao futebol (que é para a categoria masculina) ou diz que é pai/mãe de seus filhos, ela assume a postura do masculino e do feminino, unidos numa mesma mulher, que a meu ver é o perfil do feminino na contemporaneidade.

O importante não é o masculino ou o feminino ser dominante, mas sim, a conjunção de ambos, como representa a personagem Cleusa.

Desde os tempos das histéricas de Freud, a mulher sofreu grandes transformações. A aceleração do processo de emancipação da mulher, a partir dos nos anos 60, aliada às crescentes conquistas tecnocientíficas, tem feito surgir novas formas de subjetivação e formação psíquica do feminino.



A moça com o livro – Almeida Junior



A partir da diferença sexual existe na cultura uma expectativa em relação à mulher, definidos pelo imaginário coletivo, do que é certo ou errado. Mas, graças à emancipação feminina, a sociedade demanda um novo olhar sobre a mulher e a cultura.



A BUSCA DA IDENTIDADE DENTRO DA DIVERSIDADE



Os quatro irmãos


Os personagens são contemporâneos, na medida em que lutam pela sobrevivência, dentro de um quadro de violência urbana, crise de identidade e de valores, onde a saída é a reinvenção de si mesmos. Descentrados, estes personagens tematizam as camadas sociais tradicionalmente vitimizadas por processos discriminatórios e excludentes, tais como: a faxineira, o evangélico, o motoboy e o jogador de futebol que não consegue um “passe” para uma vida melhor. Eles ocupam um lugar de destaque na narrativa do filme.

Dinho, o filho mais velho de Cleusa, ora na igreja evangélica, local que frequenta e que também trabalha. O pastor da igreja diz à ele: “Jesus não é bonzinho”.

Dinho lê uma parábola: “Até quando esquecerás de mim Senhor?”

Neste cenário desolador, onde “nem Cristo é bonzinho” surge o batismo no rio, como se aquele mergulho pudesse salvar a todos e a possibilidade das águas removerem as impurezas, os pecado de cada um.

Dinho busca o seu equilíbrio por meio das rezas e do trabalho como frentista no posto de gazolina. Assim, ele consegue aumentar a sua auto-estima, que o torna capaz para a sua adaptação social. A mãe considera ele como “filho-problema”.

Dario, outro filho e aspirante a jogador de futebol, tenta passar na seleção para um time, com o objetivo de transformar a sua vida e obter algum sentido diante de um destino tão obscuro e sem perspectivas.

A sua angústia ao perceber que o prazo para se estabelecer como jogador de futebol está se esgotando é um dos elementos mais eficazes do longa, comenta o crítico Pablo (cinemaemcena.com.br)



Dario


Esta imagem diante da janela no clube, enquanto ele realiza a sua inscrição para passar pela seleção do time de futebol, é uma metáfora e simboliza a sua situação, a sua passagem neste momento difícil de sua vida

Denis, outro filho de Cleusa, o motoboy é pai de um bebê e vive entre a marginalidade e a vida real. Em seu próprio mundo ele tenta satisfazer-se de qualquer forma, mesmo roubando, o que caracteriza sua inaptidão para a vida.

Reginaldo, o filho mais novo, é obcecado pela figura paterna que não conhece, mas tenta descobrir quem é ele. O menino tem esperança de encontrá-lo dirigindo um ônibus que circula pela cidade, porisso, anda de ônibus, depois da escola, numa busca sem fim.


Reginaldo



A ausência da figura paterna neste filme é notável e a sua falta repercute na dinâmica familiar e na personalidade dos filhos de Cleusa. Como por exemplo, acarreta na personalidade de Reginaldo, um complexo de inferioridade e de inadequação, dentro da própria família.

O filme Linha de Passe instaura-se numa espécie de realismo, quase um documentário do subúrbio paulistano, que subverte as formas tradicionais de linearidade das cenas e com isso remete a ideia de que o homem da periferia vive num mundo diverso, oblíquo, instável e funciona como metáfora do seu deslocamento social, em relação à classe média e alta.

O filme mostra também a classe média e sua arrogância diante dos pobres ao excluí-los, como a patroa de Cleusa e o dono do posto de gasolina e chefe de Dinho.

Este fenômeno social garante a dominação (cultural, social, política e econômica) sobre o outro dito “inferior”. Tudo que é diferente dentro da cultura diversificada, causa estranheza e resistência no outro.

Gilberto Freyre dizia que: “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro...” (Gilberto Freyre, Casa-grande e Senzala). (Brasil, Barcelona, 1996)

A imagem urbana que surge do bairro, onde a família mora é triste e fria. A casa onde residem parece que a sua re/construção foi interrompida por algum motivo que o filme não explica.

Na frente da casa, existe uma perua velha e estacionada, que serve como um ponto solitário onde cada um pesa os seus tributos diários. Calados e insensibilizados eles tentam dirigir este veículo que nunca sai do lugar.

Como a pia da cozinha de uma casa velha, que está sempre entupida e impede a passagem da água, a vida destes tristes personagens, simplesmente não escoa, porque não há movimentos que possam impulsioná-los para alguma direção, para a liberdade, como um estado psíquico da alma.

A cidade de São Paulo apresentada em Linha de Passe é hostil, desigual e violenta. E segundo a psicanalista Laura Hansen: “Neste universo em que o reconhecimento do sujeito não é o ponto de partida do jogo, mas a batalha cotidiana, é difícil construir-se (...) As fatalidades parecem resultantes de precários laços sociais, quando a lei não promove a vida, mas a desagrega. Nesta São Paulo de frágeis contornos, cada um tenta encontrar um modo de fazer-se reconhecer e fazer-se valer, empreendendo solitárias travessias. Linha de Passe dá nome, corpo e história a milhões de anônimos que são cotidianamente ignorados”. (Revista Mente & Cérebro, 2009, p. 15)



A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA O UNIVERSO MITOLÓGICO



Invocação de Netuno


Segundo o sociólogo Zygmunt Bauman: “O anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto prazo, cheio de promesas e premonições vagas de uma experiência ainda não vivenciada, flutuar sem apoio num espaço pouco definidos num lugar teimosamente, perturbadoramente, “nem-um-nem-outro”, torna-se a longo prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade. Por outro lado, uma posição fixa dentro de uma infinidade de possibilidades também não é uma perspectiva atraente. Em nosa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o heroi popular, estar fixo, ser identificado de modo inflexível e sem alternativa é algo cada vez mais malvisto. (...) A liberdade de alterar qualquer aspecto e aparência da identidade individual é algo que a maioria das pessoas hoje considera prontamente acessível, ou pelo menos vê como uma perspectiva realista para o futuro próximo. (Bauman, Jorge Zahar, p. 35-91)

Os seres humanos, na contemporaneidade se tornaram como o lendário Proteu e suas metamorfoses.

Ele tinha dois dons que causavam inveja e interesse dos mortais: o dom da premonição (conhecia o passado, o presente e o futuro) e o dom da transformação, cujos dons foram ofertados por Poseidon, deus do mar em troca de seus trabalhos.



Poseidon, deus do mar


Proteu era um deus marinho, mas em outras versões da lenda ele é um simples pastor e que guardava os rebanhos (focas e peixes) de Poseidon (deus do mar).

Proteu tinha o poder de metamorfosear-se em todas as formas que desejasse, não só em animais, mas também em plantas e em elementos, com água e o fogo. A divindade marinha podia assumir qualquer forma que quisesse.

Como não gostava de prever o futuro, ao pressentir qualquer aproximação de um mortal ele fugia e se disfarçava ou assumia aparências terríveis e assustava seus perseguidores.

Uma das únicas maneiras de fazer com que Proteu revelasse o futuro era prendê-lo durante o sono, como fez Menelau, com a ajuda da filha de Proteu chamada Eidotéia.


Eidotéia disse a Menelau que, para decidi-lo a falar, era preciso surpreendê-lo durante o sono, e amarrá-lo de maneira que não pudesse escapar, pois ele tomava todas as formas para espantar os que se aproximavam: a de leão, dragão, leopardo, javali; algumas vezes se metamorfoseava em árvore, em água e mesmo em fogo; mas se perseverava em conservá-lo bem ligado, retomava a primitiva forma e respondia a todas as perguntas que se lhe fizessem.


Menelau seguiu ponto por ponto as instruções da ninfa. Com três dos seus companheiros, entrou de manhã, nas grutas em que Proteu costumava ir ao meio-dia descansar, juntamente com os rebanhos. Apenas Proteu fechou os olhos e tomou uma posição cômoda para dormir.


Menelau e os seus três companheiros se atiraram sobre ele e o apertaram fortemente entre os braços. Era inútil metamorfosear-se: a cada forma que tomava, apertavam-no com mais força.



Menelau forçando Proteu a revelação



Quando enfim esgotou todas as suas astúcias, Proteu voltou à forma ordinária e deu a Menelau os esclarecimentos que este pedia.


O herói o fez revelar o destino da guerra entre Tróia e Esparta.


O mito de Proteu simboliza o homem contemporâneo e seus disfarces, quando ele altera a sua identidade, a sua forma de um momento para o outro e extrai apenas o que quer daquele instante. Sua identidade é volátil, coisificada e inconstante.


O homem só pode ser compreendido em seu contexto histórico, social e cultural. Acrescento também, a visão de mundo a partir dos mitos. O mito fortifica o homem, ocultando-lhe a culpa e o orienta em suas travessias solitárias durante o seu percurso, como uma espécie de guia de viagem.


Os desafios da vida cotidiana serão mais brandos quando nos despojarmos de preconceitos para voltar o nosso olhar para os mitos, como uma forma de suporte que moldam e enriquecem nossos pensamentos e que nos levam a encontrar a chave da porta de nosso inconsciente, em busca de um caminho mais autêntico na vida, eliminando nosso desamparo.

O desamparo do homem contemporâneo é em decorrência da falta de garantias, da falta de dispositivos sociais e culturais que poderia acolher este desamparo.

Para Bauman “o sistema é líquido”, tudo flui e nada fica.(Bauman, 2005, p. 06)

Desta forma, penso que o vale é realmente as relações humanas satisfatórias e duradouras, cujas lembranças ficarão impressas na nossa mente e no nosso coração. Vale como um reencontro com a existência e a nossa transcendência.

Segundo Freud, a vida boa, na opinião dele é aquela que está repleta de significado, através de relações duradouras e mutuamente satisfatórias e que estamos aptos a estabelecer com aqueles que amamos e através da satisfação que derivamos do conhecimento de que estamos engajados num trabalho, que nos ajuda a ter uma vida melhor. Uma vida boa não nega suas dificuldades reais e frequentemente dolorosas, nem os aspectos sombrios de nossa psique. (Bettelheim, Cultrix, p. 128)

Acredito que só poderemos suportar a nossa condição de “despersonalização” na era contemporânea, quando tivermos a força e a coragem de aceitar as dimensões do mundo que nos cerca, a coragem de estar só e a coragem de aceitar o poder transformador que existe em todo o ser humano.

“Setenta anos ensinaram-se a aceitar a vida

com serena humildade (...) Não, eu não sou pessimista,

não enquanto tiver meus filhos, minha mulher e

minhas flores. Não sou infeliz,

ao menos não mais infeliz que os outros”

(FREUD)

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

BETTELHEIM, Bruno. Freud e a alma humana. São Paulo: Cultrix, 1982.

BRASIL. O livro dos 500 anos.Barcelona, 1996

Revista MENTE & CÉREBRO - 2009

WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008

Sites consultados/imagens:

www.cinemaemcena.com.br

www.google.com.br

www.wga.hu

Ficha técnica:

LINHA DE PASSE – 113 minutos – Brasil – 2008

Direção: Walter Salles e Daniela Thomas

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