Análise do filme CASA DE AREIA e uma reflexão sobre a relação do homem com a natureza, uma aflição a cada dia

Céu e areia - Lençóis Maranhenses



O filme CASA DE AREIA, produzido no Brasil, em 2005, com roteiro e direção de Andrucha Waddington, apresenta os principais atores: Fernanda Montenegro (Dona Maria), Fernanda Torres (Áurea), Ruy Guerra (Vasco), Seu Jorge (Massú), Luiz Melodia (Massú idoso) e Jorge Mautner (cientista).

O filme ganhou o prêmio Alfred Sloan para longa-metragem no Festival Sundance, em 2006, bem como, outros prêmios no Brasil.
O filme conta a saga de Áurea, em 1910, quando ela chega com a caravana do marido e a mãe, num local inóspito, no meio do nada, rodeado de muito céu e areia, no interior do Maranhão.
A atriz Fernanda Montenegro reveza os papéis com Fernanda Torres e ambas nos contam como as duas mulheres se relacionam, mãe e filha, durante as gerações que se sucedem e com seus destinos entrelaçados.


A caravana de Vasco



A caravana é chefiada pelo português José Vasco de Sá que comprou algumas terras no areal do Maranhão e pretende morar ali com a sua mulher Áurea e sua sogra, Dona Maria.


Dona Maria (Fernanda Montenegro)



Vasco simboliza o colonizador que busca além das terras adquiridas, o pitoresco, o exótico, uma mistura com a possibilidade da conquista e o desejo de fincar os pés nesta terra brasileira.
Mas, a sua ambição o impediu que aproveitasse o que de melhor havia naquelas paisagens, ou seja, a própria natureza.
A sua esposa, Áurea, se decepciona com o local inóspito e diz ao marido: “aqui quando não é céu é areia”. Ela aproveita e comunica ao marido que está grávida e que não pretende criar seu filho naquele lugar e quer voltar.


Áurea (Fernanda Torres)



Vasco recusa-se a retornar e marca o local onde ficarão acampados, até construir sua casa, só que ele é surpreendido por um grupo de nativos que roubam suas armas e seus animais.
Vasco e a família encontram-se desolados, famintos e sem proteção, onde a areia anda e leva tudo. Na primeira noite na praia, o grupo de homens de Vasco vai embora e rouba o pouco da comida que restou.
Na manhã seguinte, Vasco ao tentar construir a sua casa é impedido pelo vento que chega e derruba as estruturas, que cai sobre o estrangeiro matando-o.
Depois, ele é enterrado na própria areia pelas duas mulheres que acabam abandonando o local.
Áurea está grávida e Dona Maria muito preocupada sai em busca de ajuda e depois de fazer muitas orações encontra Massú, um nativo do lugar. Ele dá para ela peixe, sal e a acompanha de volta para casa.


Massú (Seu Jorge)



Áurea foi ganhando a sua confiança e aprendendo com ele, os hábitos, os valores, os costumes do lugar o que propiciou a sua adaptação.
E a relação de Massú e Áurea é de solidariedade e depois se transforma em amizade e amor.
O posicionamento da protagonista em querer sair daquele lugar é a ideia que move a sua busca durante o filme. Ela foi marcada por um casamento arranjado e viúva, tenta voltar para a capital, em busca de outra vida, outras experiências e também um encontro consigo mesma.
Mas, quando ela consegue se adaptar ao local com a ajuda de Massú, Áurea percebe que as coisas são provisórias e as distâncias e as proximidades entre as pessoas são relativas.

No transcorrer do filme, surge Maria, com aproximadamente 12 anos, filha de Áurea e Vasco. Mas, ela é uma criança interrompida, desde que nasceu vive dormindo e está sempre de camisola, como se esperasse um momento certo para acordar, de verdade.
A transformação de Áurea e de sua filha Maria se dá no percurso do tempo e na busca incessante de ambas sairem dali.


Áurea e Maria



Um eclipse torna a região conhecida e traz cientistas para aquelas areias brancas. Neste momento, Áurea pode encontrar uma possibilidade de sair daquele lugar.


A relação do homem com a natureza, em Casa de Areia


A casa de Maria e Áurea



O cinema já mostrou a natureza das mais variadas formas, complicadas e terríveis. E no filme Casa de Areia o cinema mostra a natureza no seu aspecto controlado e estético. Mas, quando ofendida e desrespeitada a natureza pode descarregar toda a sua força descomunal, a areia que se move e engole tudo.
Neste filme, o som da natureza também participa como uma expressão simbólica de comunicação, como os pássaros que sobrevoam a cabeça de Dona Maria na praia, demonstrando com seus ruídos, uma metáfora de um pedido de socorro. Outras vezes, o som da natureza desempenha o papel simbólico de comunicar a voz silenciosa das personagens, como se fosse um eco de suas angústias.


Lençóis Maranhenses



O cenário do filme Casa de Areia é o deserto, é a região dos Lençóis Maranhenses chamada também de Saara Brasileiro. Com suas magníficas dunas, a paisagem se estende ao longo da costa do Maranhão e avança continente adentro. Desenhadas pelos ventos incessantes são chamadas regionalmente de morrarias, são as dunas sempre em movimento.
O céu é limpo e azul, outras vezes fica carregado de nuvens de água, areia e ar e está sempre mudando de aparência, nesse deserto de ilusão. Na época das chuvas, de novembro a junho, formam-se grandes lagoas em tons verdes e azuis.


Maria e Áurea



Os habitantes da região são nômades e seguem as mudanças ditadas pela natureza, deixa as dunas na época de seca e para lá retornam quando ressurgem as lagoas com muito peixe e crustáceos.
Eles não constroem casas de madeira ou pedra, só de palha, porque lá nada é durável. Orientam-se pela própria natureza, onde o vento ajuda a construir e também ajuda a derrubar. As forças da natureza são reveladas pelo vento e pela areia que se move, como uma metáfora da vida, onde nada é estático.
A vida é movimento, mudança, fluxo incessante. Ir contra isso é ir contra a própria existência como comenta Lucrécio, no século I a. C.: “para afugentar o temor e as trevas do espírito é preciso conhecer verdadeiramente a Natureza”. (Viver Mente & Cérebro, agosto/2005)
Acredito que esta Natureza que o filósofo cita não é apenas a natureza que conhecemos, mas também a nossa natureza interior, ou seja, precisamos conhecer como funcionamos para apaziguar nosso espírito em momentos de dificuldades.
No filme, os conflitos com a natureza é mediado pelos dramas humanos e vice-versa, natureza e humanidade são duas forças e que são projetas de forma complementar. As relações humanas são representadas pelas atitudes de respeito diante da natureza.
O personagem de Massú, com a sua simplicidade, respeito e temor diante da natureza sente uma curiosidade não manipulativa para com ela porque lá a população precisa apenas do rebanho de cabras e dos peixes que pescam no mar. Eles vivem onde tem comida para eles e para os animais que criam para vender ou para a própria alimentação.
A Vasco é o símbolo do homem e da sua soberba e auto-suficiência diante da natureza. O homem quando se julga superior a esta e tenta dominá-la ele sofre as conseqüências trágicas do seu esquecimento de que a natureza é o princípio de todas as coisas. A natureza apenas se protege do agressor quando é ofendida.
Para Dona Maria, a natureza é uma forma estranha e misteriosa como os desígnios de Deus.
Para Àurea, a natureza aparece como princípio oculto tornando-se um mistério, porque está vinculada aos seus desejos íntimos de sair daquele lugar. O seu descontrole é revelado pelas areias que se movem e engole tudo.
Este desejo depois será neutralizado pela força e beleza desta natureza e também pelo amor que acontece ao se apaixonar por Massú, um nativo que nunca saiu dali.
Já os cientistas que surgem, por sua vez, tentam “arrancar os segredos da natureza”, tentando submetê-la a testes científicos. Não se sabe se estes cientistas ainda são capazes de adotar alguma atitude de sacralidade e respeito para com ela. Mas, o homem cientista é mostrado como sujeito de conhecimento e representado pelo grupo que comemora uma eclipse, que ocorreu na região, no ano de 1919.
A estética do filme é reveladora porque, ao mesmo tempo que, mostra a imensidão do céu e toda aquela areia, esta imensidão confronta-se com o pequeno mundo, em que as três mulheres vivem, durante três gerações, numa atmosfera de profunda solidão.


Áurea



Talvez a mensagem deste filme seja apenas de que devemos aprender a conviver com o extraordinário da natureza, que nos surpreende de vez em quando, como o meteoro que brilha no céu, o cometa que surge e desaparece no céu forrado de estrelas. E a humanidade deve abandonar o pensamento de que, apenas a nossa espécie tem direito à vida. Ao entender a natureza nós compreenderemos que somos parte dela, como são todos os outros animais, porque somos todos da mesma natureza.
Como diz Nietzsche “é a coragem frente à realidade que diferencia as naturezas.” (Viver Mente & Cérebro, agosto/2005)
Para este filósofo uma natureza forte não se refugia nos ideais; ela afirma o caráter trágico e problemático da existência, sem depreciá-la, nem querer transformá-la.

Segundo o autor Julio Cabrera, na história da filosofia, a noção de natureza sofreu uma reviravolta fundamental, de uma visão sacralizada e mitificada, na qual aparece cheia de deuses e de forças ligadas magicamente com o mundo humano ou como o Princípio fundamental de onde tudo surge, à visão moderna da natureza, guiada pela observação sistemática e controlada pelo Método Experimental.
De certa forma, as duas visões da natureza introduziram nela um elemento controlador, no primeiro caso, porque ela era relacionada com um tipo de realidade “moral” humana. A natureza proporcionava uma essência a ser realizada como um critério de sucesso e de fracasso, um ponto de referência a partir do qual se podia julgar o êxito de um objeto, inclusive o objeto humano. No segundo, porque a natureza se rendia, em última análise, às leis da matéria, apesar de sua aparência múltipla e mutável. (Cabrera, 2006, pág. no. 112)
O autor acrescenta ainda que, as modernas técnicas de manipulação da natureza incluindo plantas e animais inauguram um novo ponto de vista a respeito dela, a natureza passa a ser regulada pelas leis que os homens impõem, através do controle das regularidades empíricas e que a natureza responde a nossas interrogações, acomoda-se a nossas legalidades satisfazendo em grande medida as expectativas formuladas por nossas hipóteses. Aqui se rompe todo o vínculo com um plano moral ou antropomórfico. Mas, de qualquer forma, o elemento controlador da natureza é renovado, é reformulado agora sobre bases científicas. A ciência do controle total deve reduzir um pouco a sua arrogância desmedida, sem que a racionalidade deva por isso ser diminuída. (Cabrera, 2006, pág. 119)

A natureza acaba sendo num paradoxo, de vingativa em alguns momentos, ela também é acolhedora, como uma mãe que educa seus filhos com amor, mas também com punição se preciso for. De uma forma íntima e tranqüilizadora, ela surge todo o dia com todo o seu esplendor e beleza. E às vezes, encoberta por seus mistérios ela precisa ser decifrada como as areias que se movem ou como os ruídos dos pássaros com suas mensagens.


O potencial da natureza nos mitos


Flora e Zéfiro (deus dos ventos)



No passado distante, o homem era como uma criança que adorava contos de fadas. Quase impotente diante das forças da natureza, levava uma vida de desconforto e dificuldades inimagináveis.

A seu redor, forças aterradoras frequentemente provocavam desastres, mas também o fascinavam com sua grandeza e seu poder, enchendo-lhe o coração de amor pela vida. Num esforço para torná-la menos incompreensível, ele buscou as causas por trás dos horrores e maravilhas com que se deparava. Seu conhecimento limitado, só frustrava as tentativas de encontrar a explicação verdadeira para os fenômenos e assim sua imaginação começou a trabalhar. Uma imaginação fértil, que tecia histórias incríveis, cheias de beleza e sentimento, mas com um traço de tristeza espelhando sua existência árdua. Assim, nasceram os mitos, que parecem contos de fadas, segundo o autor Stephanides, em sua obra “Os deuses do Olimpo”.
O autor comenta também que, por trás deles, invariavelmente, há fatos reais. Na Mitologia Grega pode-se encontrar a vida dos antigos, da forma como eles mesmos a viam e explicavam e, acima de tudo, pode-se encontrar sua percepção do mundo. A Mitologia é a sua religião. (Stephanides, p. 02-03, 2001)
O mito é uma história sagrada, uma narrativa de acontecimentos que se deram num tempo primordial pela intervenção de seres sobrenaturais. Os mitos substituem a religião na Grécia antiga e o homem primitivo como não entendia os fenômenos naturais resolveu compreendê-los movido pelo seu desejo de explicar a origem destes fenômenos. A natureza os acolhia, mas também os intimidava com seus raios, secas, furacões, eclipses e outros elementos desconhecidos. Eles eram auxiliados pelos deuses ou pela magia, de qualquer forma, tinham que se defender.
Atualmente, apesar de nossos conhecimentos científicos e da alta tecnologia, de vez em quando, também somos surpreendidos com os fenômenos da natureza, na qual não nos valem as cientificidades, mas a nossa astúcia mais primitiva diante dos segredos da natureza.


Referência bibliográfica:

1) Cabrera, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
2) Ramos, Luciano. Os melhores filmes novos: 290 comentados e analisados. São Paulo: Contexto, 2009.
3) Revista Viver Mente & Cérebro – agosto - 2005.
4) STEPHANIDES, Menelaos. Os Deuses do Olimpo. São Paulo: Odysseus Editora Ltda, 2001.

Site consultado/ imagens: www.google.com.br

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