Análise do filme “Melancolia”: arte, mito e depressão

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Cartaz do filme

 

Ao compasso do prelúdio de Tristão e Izolda, de Richard Wagner, o espectador assiste a abertura do filme Melancolia, de Lars von Trier. A cena começa com uma noiva caminhando com dificuldade e tenta se livrar de um emaranhado de novelos de lã cinza que se enroscaram em seus tornozelos e impede os seus movimentos. A dinâmica da cena é semelhante a um sonho, daqueles em que o sonhador sofre porque não consegue correr.

 

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A noiva (Kirsten Dunst)

 

As imagens que surgem nesta abertura parecem não ter nenhuma relação entre si e são acompanhadas de uma lentidão, sem fim, que causa um certo desconforto no espectador.

A fotografia magnífica é de Manuel Alberto Claro (chileno que mora na Dinamarca desde criança) e evoca os grandes mestres da pintura inglesa.

Os efeitos visuais são de Peter Hjorth, que utiliza as imagens sobrepostas, técnica utilizada pelo diretor.

 

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O planeta Terra e o planeta Melancolia

 

O filme Melancolia narra a história de duas irmãs e o confronto com o fim de um casamento, o luto, a depressão e o assombro de dois planetas que se irão se chocar, são os temas que conduzem esta narrativa.

Justine é uma jovem bonita e inteligente, portadora do transtorno psíquico da depressão, que causa a instabilidade emocional, o desânimo profundo, a cessação da capacidade de viver e de realizar as atividades mais prosaicas do cotidiano, como um simples banho.

 

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O noivo, Justine, John e Claire

 

O casamento de Justine é desfeito e conforme o filme avança a personagem se vê desmotivada, cansada e parece uma morta viva, com sentimentos ambivalentes. Ela aceita da ajuda de sua irmã Claire que tenta protegê-la.

Segundo Lars von Trier, em uma de suas entrevistas, as irmãs representam as duas facetas de uma mesma dinâmica emocional. Elas percebem a catástrofe iminente, cada uma à sua maneira. Justine demonstra conformidade, enquanto Claire sofre a cada transformação do planeta Melancolia no céu.

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Justine e Claire

 

Justine caminha pelos jardins deslumbrantes e depois pára diante de um lado e se deita nua, na grama verde. A beleza do ambiente e a sua realidade confusa e doentia não contribuem para transparecer o seu sofrimento e deixa o espectador se transformar num voyer, diante da cena tão bela.

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Justine sob a luz do luar

 

O seu corpo pálido na grama verde, sem o momento da morte, num extase consigo mesma, traz Justine novamente à vida, mas apenas por alguns instantes.

A surpresa neste filme é como Justine reage ao desastre iminente, quando a terra chega ao seu fim, ao chocar-se com outro planeta.

 

  LUTO E MELANCOLIA: O INFERNO HUMANO

 

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Melancolia – Dürer

Em 1917 Sigmund Freud escreveu, em Luto e Melancolia, que o luto normal resultava de um retraimento da libido de sua vinculação ao objeto perdido. No luto, a perda é claramente percebida, mas no luto anormal (melancolia), o objeto perdido não é esquecido, mas incorporado à psique, tonando-se objeto de sentimentos ambivalentes. Os sentimentos negativos são expressos contra o próprio self e a pessoa se torna deprimida, desenvolve a baixa auto-estima com possíveis delírios de punição. A perda da auto-estima não é comum no luto normal. (Kaplan, 1991, p. 66)

Com a descoberta da Psicanálise as doenças da mente passaram do caráter de origem no sobrenatural para o natural, ou seja, relacionado ao próprio organismo, ao fisiológico, a explicação para a origem das doenças psíquicas.

Através dos sonhos o consciente se comunica com o inconsciente e a sua importância é que nenhum outro fenômeno revela o caráter metafórico da linguagem. O sonho protege o sono (desejos inconscientes) e é a via real para o inconsciente, como os mitos também são.

Os impulsos irracionais determinam nossos pensamentos, ações e sonhos e são capazes de trazer à luz instintos e necessidades, que estão profundamente enraizados dentro de nós e estas necessidades podem vir disfarçadas e não somos capazes de reconhecê-las. Assim disfarçadas governam nossas ações e podem surgir nos nossos sonhos.

Segundo a teoria freudiana o símbolo é o que dissimula o desejo mas é também o que revela aquilo que esconde. O símbolo é um sinal ou representação de algo ausente ou impossível de representar e está relacionado ao campo sexual do indivíduo e habita em seu inconsciente.

O simbolismo em sentido geral é o modo de representação indireta e figurada de uma ideia, conflito ou de um desejo inconsciente. Em sentido mais restrito é um modo de representação que se distingue principalmente pela constância da relação entre símbolo e o simbolizado inconsciente. Essa constância encontra-se não apenas no mesmo indivíduo mas também de um indivíduo para outro e nos domínios mais diversos como: mitos, religião, folclore, linguagem,etc. (Valente, 2007, p. 213)

Os mitos são construções da humanidade que nos mobilizam emocionalmente quando reconhecemos em suas lendas, algo semelhante com as nossas experiências cotidianas. O mito veicula uma crítica aos exageros ou desmedidas dos próprios deuses e dos homens. Os mitos também são formas de conhecimento, portanto, é um elemento essencial porque nos aponta para caminhos para a transformação, sem realçar a culpa para não torná-la insuportável. Essa flexibilidade que o mito propõe permite o processo de conscientização dos atos dos personagens míticos e os castigos que recebem quando não compreendem o sentido evolutivo da vida. O sofrimento que pode ocorrer neste processo pode fazê-lo tomar consciência de que foram seus desejos exaltados que provocaram a angústia e a culpa e o desviou do seu destino. O valor do mito está em descrever uma lenda universal, ou seja, comum à todos os homens.

O mito vai ser sempre uma metáfora da realidade social e que expressa expectativas humanas universais e relata uma explicação do mundo, sendo uma realidade profunda da nossa mente. Segundo Paul Diel o tema fundamental dos mitos é a evolução não somente do homem mas também de toda humanidade

O mito enlaça e solidariza forças psíquicas múltiplas. Todo mito é um drama humano condensado. E por essa razão que todo o mito pode, tão facilmente, servir de símbolo para uma situação dramática atual. (Diel, 1991, p.10)

Desta forma, estabeleço uma conexão com o drama, do texto literário da peça Hamlet (Shakespeare), com enfoque na personagem Ofélia e o texto visual do filme Melancolia. A comparação entre as duas personagens pode nos auxiliar a realizar várias leituras do tema da mulher e seus mistérios. Ao criar um diálogo entre mito de Ofélia e a personagem Justine encontramos novas possibilidades de leitura destas personagens tão enigmáticas.

 

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Justine

 

 

O texto literário e o visual: uma comparação entre o mito de Ofélia e Justine do filme Melancolia, a mulher e seus mistérios

 

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Ofélia - John Everett Millais (1896)

 

O Romantismo (1750-1850) foi um movimento abrangente e desenvolvido como uma reação ao Neoclassicismo. Na história da arte ocorreu no período de 1800 a 1840, entre o Neoclassicismo e o Realismo.

 

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Rossetti

 

Em 1848 nasce em Londres a Confraria dos Pré-Rafaelitas inspirados por um sentimento de forte oposição à arte das academias, ao convencionalismo da sociedade vitoriana e ao moderno desenvolvimento industrial, o modelo era representado pela arte anterior à Rafael e só acreditavam que poderiam encontrar os valores éticos, a espontaneidade e a adesão ao elemento natural, assim como a “verdade” que Rafael tinha revelado para o alcance da beleza ideal. (Scala, 2010, p. 179)

Uma das estéticas das pinturas Pré-Rafaelitas era o uso da natureza, em busca da representação mais real possível, num esforço de unir os temas: natureza, mulher e emoção. O feminino torna-se parte da natureza, sendo o corpo da mulher idealizado, mas excluída da sua sexualidade.

A beleza da mulher pré-rafaelita inspira-se ao mesmo tempo no Renascimento e numa Idade Média de lenda (...) do rei Arthur, do Graal, na Inglaterra. (Faux, 2000, p. 72)

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Rainha Guinevere – obra de John Collier

A representação da personagem Ofélia, da peça Hamlet (Shakespeare) transformou-se em objeto das artes visuais e possibilitou muitos artistas a retratarem esta figura feminina como arquétipo da bela, jovem e com insanidade mental, nas criações pictóricas.

 

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Ofélia – Alexandre Cabanel

 

As suas primeiras representações nas artes visuais surgiram em pinturas e ilustrações baseadas nesta personagem, por volta de 1740. A morte de Ofélia por afogamento (ou suicídio?) gerou na pintura um símbolo da morte feminina.

 

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Ofélia – Paul Delaroche

 

Na peça, Hamlet é o personagem central e vive suas crises existenciais e a obsessão por uma vingança, onde a dúvida e o desespero adquirem a dimensão trágica do personagem. Enquanto a presença de Ofélia na peça é secundária, mas nas artes visuais ela é protagonista.

Alguns pintores como Arthur Hughes prefere não mostrar a cena do afogamento de ofélia, mas o momento em que ela vaga pelo lugar. (revistas Todas as Musas, ano 2, jan/jul/2010)

 

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Ofélia – Arthur Hughes

 

 

A pintura da figura de Ofélia pode ser vistas nas obras de alguns pintores como de Odilon Redon, que pintou uma série com vários quadros, aquerelas e pastéis tendo Ofélia como tema, segundo Érika V.C. Vieira

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Ofélia - Redon

 

Os pintores desta época pintavam de forma expressiva como de Elizabeth Siddal, modelo ideal para todo o grupo de Pré-Rafaelitas que flutua como um espectro nas vestes de Ofélia cercada por plantas e flores ricas de alusões simbólicas. (Scala, 2010, p. 188)

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Ofélia – John Everett Millais (1852)

 

Ao comparar Justine com o mito de Ofélia percebo o quanto ambas são projetadas na esfera cultural. Enquanto Ofélia é identificada com a irracionalidade emocional e morre por amor, Justine é a “evolução” desta personagem como se fosse um arquétipo da insanidade feminina e as suas fragilidades.

Os atributos do “sexo frágil”  são representados tanto na literatura shakesperiana, como no pictórico pelos artistas aqui em destaque.

A morte e o seu rito é uma construção cultural, portanto, é um símbolo com várias interpretações inclusive no campo religioso. Mas, talvez a mensagem do diretor seja de que, por meio da personagem Justine, a sua luta contra a morte pode ser cristalizada em um filme.

 

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Capa da revista Vogue

Tanto Ofélia como Justine estão associadas mais a morte do que à vida. A loucura e a morte permeiam a vida destas personagens, como uma metáfora da mulher e seus mistérios, como as pinturas dos Pré-Rafaelitas e suas musas, cercadas por plantas, flores e ricas de alusões simbólicas e românticas.

Já o diretor Lars von Trier pós-depressão, que sofreu em 2007, ao contrário, une a mulher à natureza má e destruidora. A mulher é revelada num estado de vazio, que se conecta à uma beleza melancólica e sombria. Ao mesmo tempo, a mesma mulher inventa uma caverna mágica construída com gravetos, para se proteger do fim do mundo.

Shakespeare ao escrever a peça Hamlet e a personagem Ofélia, com muita sensibilidade sabe dos arquétipos e símbolos que operam na mente feminina, contando as suas histórias que tornaram universais, porque discorrem sobre a condição humana e seus obstáculos. Na peça Hamlet, diz Ofélia: “Senhor, nós sabemos o que somos, mas não o que seremos”. (Shakespeare, L&PM, p. 102)

O poema de Clarice Lispector também nos traz outra referência sobre a “Lucidez perigosa” que revela a melancolia, como uma espécie de estado mental, no qual a lucidez pode-se tornar o inferno humano.

“Estou sentindo uma clareza tão grande

que me anula como pessoa atual e comum:

é uma lucidez vazia, como explicar?

assim como um cálculo matemático perfeito

do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer vendo claramente o vazio.

E nem entendo aquilo que entendo:

pois estou infinitamente maior que eu mesma,

e não me alcanço.

Além do que:

que faço dessa lucidez?

Sei também que esta minha lucidez

pode-se tornar o inferno humano

- já me aconteceu antes.

Pois sei que em termos de nossa diária

e permanente acomodação resignada à irrealidade

essa clareza de realidade

é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,

porque ela não me serve

para viver os dias.

Ajudai-me a de novo consistir

dos modos possíveis.

Eu consisto,

eu consisto,

amém.”

Referência bibliográfica:

1- DIEL, Paul. O simbolismo na mitologia grega. São Paulo: Attar, 1991

2- FAUX, Dorothy Schefer. A beleza do século. São Paulo: Cosac & Naify, 2000.

3- KAPLAN, Harold. I. Compêndios de Psiquiatria. Sexta edição. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1991.

4- Revista Todas as Musas – Ano 01 – número 02 – jan-jul -2010.

5- SCALA, Groups. Arte do século XIX. Florence, Italy, 2010.

6- SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 2001.

7- VALENTE, Nelson. Mito, Sonho e Loucura. São Paulo: Intermedial Editora, 2007.

Imagens livro: A arte do século XIX – Visual Encyclopedia of Art – Italy – 2010.

Site consultado:

www.google.com.br

Ficha técnica do filme:

Título: Melancolia

Direção: Lars von Trier

Ano: 2011

Gênero: ficção

Países: Dinamarca, Suécia, França e Alemanha

Elenco: Kirsten Dunst (Justine), Charlotte Gainsbourg (Claire), Alexander Skarsgard e Kiefer Sutherland (John).

 

Autora: Rosângela D. Canassa

Comentários

Muito boa análise! O filme parece-me também bastante explícito na relação solidão e depressão, quando os rituais não são capazes de preencher a existência, a insuportabilidade da convivência familiar, o trabalho vazio a preencher o tempo, a fragilidade da ciência e do masculino. Grande filme!
Unknown disse…
Minha Crítica.
http://meucantonomundo.com/o-lado-obscuro-do-planeta-melancholia/

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