MNEMOSYNE A DEUSA GREGA DA MEMÓRIA E MÃE DAS NOVE MUSAS
Atlas de Aby Warburg
“Da
influência do antigo esta história é fabulosa para contar. Histórias de
fantasmas para gente grande”
(Warburg)
A palavra “imemorial”, ou seja, de tão antigo que desaparece da memória; antiquíssimo. Eu me pergunto se na história da arte existe alguma imagem esquecida no tempo. Na mitologia grega, Mnemosine é a deusa grega da memória. É uma das titânides da segunda geração dos deuses, filha de Gaia (a Terra) e Urano (o Céu). As filhas são as musas: Calíope, Clio, Erato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Tália, Terpsícore, Urânia.
Mnemósine
também era o nome de um rio no Hades, em frente a Lete, de acordo com uma série
de inscrições funerárias gregas do século IV a.C. As almas dos mortos bebiam nesse
rio para que não se lembrassem de suas vidas anteriores quando reencarnassem.
No
Orfismo, que pregava a capacidade musical e espiritual da pintura, os iniciados foram incentivados a beber do rio
Mnemosine, o rio da memória para impedir a transmigração da alma. Segundo
Pausânias, em Lebadeia na Beócia havia a caverna de Trofônio, que era uma das entradas
do submundo e onde entrar era necessário primeiro beber de duas fontes. A
primeira, com o nome de Lete (esquecimento) fazia esquecer das coisas passadas,
enquanto a outra, com o nome de Mnemosine permitia lembrar o que teríamos visto
na vida após a morte.
Mnemosine
foi objeto de algum culto menor na Grécia Antiga com estátuas dela, que são
mencionadas nos santuários de outros deuses, e ela era frequentemente retratada
ao lado de suas filhas, as musas. Ela também era adorada em Lebadeia, na
Beócia, no Monte Hélicon, na Beócia, e no culto de Asclépio.
Havia
uma estátua de Mnemosine no santuário de Dioniso, em Atenas, ao lado das
estátuas de Zeus e Apolo e uma estátua com suas filhas, as musas, no templo de
Atena Alea. Os mitos que são relatos transmitidos oralmente não se constituíam
uma interpretação racional, mas uma visão imagística, que se propagava entre as
gerações, visto que pertenciam ao registro da experiência de mundo. Nos relatos
míticos encontramos a abertura para a experiência que permitia gravar na
memória, narrativas que decodificavam modos de ser e de situar-se no mundo.
Aby Warburg
(1866-1929) era um pensador alemão, que entendia a cultura humana como um todo
ele buscava seguir o devir das imagens como pista para desvendar o que temos em
comum. Antecipou, em vários sentidos, as ideias de cultura visual e arte global,
que hoje desafiam não somente historiadores como também artistas. Podemos
aprender muito com sua obra, sobretudo que o melhor pensamento visual requer aprofundamento
no repertório.
A
partir de 1912, a sua estética influenciou profundamente o estudo das imagens
ao considerar a arte como forma simbólica e, de acordo com a iconografia, ao
colocar a questão da interpretação das imagens (Vanoye, 2008, p. 202-03).
O
artista montava imagens sobre painéis, organizando-as por grupos temáticos e
palavras-chave, apontando persistências e coincidências, buscando ecos e
repetições entre obras e não necessariamente oriundas de contextos culturais
vizinhos. Isso permitia comparações, às vezes geniais, às vezes tortuosas, entre
antiguidade e modernidade, ao que ele chama de atlas Mnemosyne numa homenagem
a deusa grega da memória, mãe das nove musas. As pranchas eram dispostas não em
linha reta e não sequenciais. E esses modos de descrever o modelo warburguiano,
se atentam para a tensão entre a consciência e a inconsciência, entre a
imitação e a criação.
Seguindo uma lógica própria, Warburg fundamentado em sua vasta erudição e conhecimento histórico, ele foi desenvolvendo um método original de pensar não somente o significado das imagens, mas também o modo como elas significam numa cartografia, que é composta por imagens de obras de arte e da cultura (bem como elementos de outras ordens, como selos, como exemplo), dispostas nas pranchas a partir de um fio invisível, que as norteia e em cada prancha, uma espécie de assunto. No entanto, essas reuniões imagéticas, não são simples divisões temáticas, nem prezam por associações espaciais ou temporais, o fio que as reúne se explica pelo conceito mais importante de Warburg de Pathosformel. Em tradução do alemão, as Pathosformeln são as “fórmulas patéticas”, ou seja, maneiras gestuais, que se repetem ao longo dos séculos como fórmulas para exprimir determinado estado de coisas.
Warburg
foi o pioneiro em conceber as imagens de modo disseminado e universal, sem
divisões hierárquicas entre culturas e mídias. A fotografia interessava tanto
quanto uma pintura, povos não europeus tanto quanto a Europa. O precursor não
somente em seu olhar para a linguagem das formas a chamada iconologia como também
por seu interesse em estudos etnográficos como instrumento para compreender a
arte.
Mnemosine,
afinal, é memória. Do seu ventre, brotaram as artes e a história e nesse sentido,
a complexa relação de não causalidade proposta por Warburg, que é exemplo de sua
própria teoria. Assim explica o historiador da arte francês Philippe-Alain Michaud
(1961):
A gênese de Mnemosyne
deve ser buscada na viagem aos Estados Unidos, à semelhança de Eisenstein
interpretando os hieróglifos japoneses, Warburg havia descoberto entre os hopis
uma concepção da montagem capaz de transformar as imagens, por meio da dança ou
do desenho, em ação. E foi através do
ritual indígena, por um efeito de colisão, que Warburg veio a reconhecer no
traçado da imagem serpeante o sintoma da atenção dedicada pelos artistas do Renascimento
à representação do movimento e a fazer do Laocoonte a imagem emblemática dessa
representação (DIDI-HuBERMAN, 2013, p. 193-197).
Dessa
forma, pode-se concluir que, Warburg, a complexa relação de não causalidade
proposta pelo artista, agrega e não questiona. O seu objetivo teria sido de não
afirmar uma inexistência, mas conclamar uma necessidade, uma exigência de que a
história da arte de fato comece a existir. Esse recomeço se daria pelo gesto de
permitir a existência de uma história da arte a partir das próprias obras de
arte.
Em
outras palavras, as obras de arte não poderiam mais ser vistas apenas como modelos
sobre estudos de conteúdo ou forma; mas, sim, como objetos em si dos estudos
dessa disciplina inaugural. Nesse caso, vencendo o dominante discurso de que a
história da arte é a disciplina cujos estudos se ilustram com obras de arte,
ela deveria, portanto, ser a disciplina cujos estudos são sobre as obras de arte
e coloca em xeque elementos como “causa”, “influência”, “paternidade” e
“temporalidade”.
A
ascensão do nazismo colocou em dúvida o destino de sua biblioteca em Hamburgo,
e seus discípulos organizaram a transferência dos livros e materiais
iconográficos para Londres, onde serviram de base para a criação do Warburg
Institute em 1934. Desde então, houve várias tentativas de publicar versões do
atlas, na íntegra ou em parte, o que só fez aumentar as disputas em torno do
sentido da obra.
Os
desdobramentos de seu pensamento são investigados ainda hoje e mais
principalmente hoje. A sua obra transformou os estudos no campo da arte como
teve papel decisivo sobre intelectuais tão diversos como: Didi Huberman,
Michaud, Ernst Gombrich e outros. A sua coleção de imagens e documentos
tratava-se sobre a psicologia dos modos de expressão humana. Curiosamente
contemporâneo, Warburg é pouco conhecido no Brasil e afirma que existem imagens
que nos deixam memórias.
Referência:
DIDI-huberman,
Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos
fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
Rosangela
Canassa – escritora e psicóloga. Atua em São Paulo.
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