Análise do filme: "A Casa do Lago" e o Mito de Eros e Psiquê
O filme A Casa do Lago, produzido nos EUA em 2006, com direção do argentino Alejandro Agresti tem a participação dos atores: Keanu Reeves (Alex Wyler), Sandra Bullock (Kate Foster) e Christopher Plummer (Simon Wyler).
O filme foi baseado no clássico Tarde Demais para Esquecer (1957), com os atores Cary Grant e Déborah Kerr.
O filme A Casa do Lago narra a história de Kate Forster, uma médica solitária, que morava em uma casa à beira de um lago, no ano de 2006. Nesse ano, ela deixa a casa para trabalhar no hospital, em Chicago, após o término de sua residência. Na partida, ela deixa um bilhete para o próximo inquilino, pedindo que ele encaminhe as correspondências que chegarem para o seu novo endereço.
A médica menciona também que as inexplicáveis marcas de patas de cão na porta da frente da casa já estavam lá, quando ela se mudou.
Em 2004, a casa do lago esta ocupada por Alex Wyler. Um arquiteto frustrado, que possui a mesma profissão de seu pai.
Simon Wyler é um arquiteto renomado, mas que abandonou a família em função da vida profissional, e Alex não o perdoa, e sentencia: “Ele sabe construir uma casa, mas não sabe construir um lar”.
Kate e Alex acabam se conhecendo, em 2004, durante a festa de aniversário dela; nesse momento, eles descobrem suas afinidades. Mas o encontro foi rápido demais para Kate e nada significou.
O diretor utiliza esta cena como um pretexto para que o casal trave conhecimento, o homem ter encontrado a moça, com sugestão de que os dois são feitos um para o outro e também a insinuação de que o encontro já teve lugar, meramente no sentido de ser predestinado, o destino une os amantes, independente do tempo ou lugar.
A casa do lago é a protagonista do filme e também o cupido entre o casal. Outro elo entre eles é a cachorra chamada Jack, que possue um comportamento quase humano.
O casal passa a trocar cartas e, assim, eles ficam mantendo um relacionamento à distância e em tempos distintos. E ao se descobrirem apaixonados um pelo outro, eles buscam um meio de se encontrar, mas eles não imaginavam que entre os dois existia um grande “obstáculo”, que eles teriam de vencer: o tempo.
É TEMPO DE AMAR
A diferença do tempo cronológico no filme é uma metáfora e simboliza como é importante estar pronto para viver um amor quando ele acontece. Os dois lados devem estar procurando a mesma coisa, a mesma vontade de viver a experiência do amor. E quando se encontram devem estar no mesmo tempo interno, o que significa que o casal deseja viver o amor, estando atento para desfrutar da experiência amorosa quando ela surge.
Mas, as pessoas vivem dentro de suas próprias circunstâncias de vida, cada um em seu tempo e muitas vezes estão num momento difícil, como, por exemplo, enfrentando problemas financeiros, doenças, o que pode afetar a concretização da união, porque os indivíduos não estão prestando atenção ao que acontece ao seu redor e estão comprometidos com a situação que está gerando as dificuldades em suas vidas. Portanto, quando o amor aparece na vida de alguém ele deve ser percebido e acolhido, imediatamente.
Em 2004, Alex tentou conquistar Kate, mas era um momento inoportuno e conseqüentemente ele foi rejeitado. Será que foi uma punição do destino porque ele não esperou o tempo certo? Esta é uma das mensagens que o filme pode nos transmitir.
O filme mostra também que o relacionamento do casal se desenvolve à distância e as cartas que trocam entre si acabam auxiliando-os a se conhecerem, mesmo em tempo cronológico distinto.
Em plena era da comunicação eletrônica, da Internet, eles usam as cartas e com um tempo maior decorrendo entre a pergunta e a resposta, se indagavam sobre o trabalho, o cotidiano e outros assuntos. Assim, eles têm tempo suficiente para saber mais sobre as idéias e emoções de cada um.
Segundo a escritora Mônica Buonfiglio, em algumas décadas atrás, não havia outra forma de comunicação a não ser por cartas ou telefone.
Era relativamente comum que o namoro se desenvolvesse através de correspondências. E depois poderiam até ficar noivos, sem terem usufruído da companhia de um e de outro. E como conseqüência, o casal poderia marcar o casamento, sendo o primeiro encontro entre eles na Igreja, no dia do matrimônio.
Felizmente, hoje temos a Internet e a comunicação pode se desenvolver em qualquer canto da Terra, em qualquer tempo. A diferença é quando se inicia um relacionamento na rede, as idéias do outro, os seus interesses, o que pensa e sente ficam em primeiro plano e o aspecto físico, em segundo, porque só vai ocorrer quando se encontrarem.
Para Sigmund Freud (1856-1939), na hora da escolha amorosa todos nós temos uma imagem de como deve ser nossa cara metade, e a origem das escolhas amorosas está no passado, mais especificamente na infância, quando o primeiro objeto de amor são nossos pais. Os relacionamentos são fortemente associados a nossos modelos parentais e às identificações do período edípico (mãe, pai, professores, irmãos etc.).
Num casal, os sujeitos conjugam aspectos conscientes e inconscientes originados na trama identificatória da qual fazem parte sentimentos, emoções, fantasias, idéias, expectativas etc.
E quando bate a sintonia de ambos, a mesma freqüência somada à química sexual, a relação amorosa pode dar certo. Amar é ver o outro como indivíduo, portanto, o amor não pode ser uma ilusão. Amar é ver o outro como ele é real, simples e verdadeiro.
A ANATOMIA DO TEMPO NO CINEMA
O diretor utiliza um paradoxo temporal que é um diferente aspecto de tempo em cinema. A maneira pela qual o filme modifica o tempo do mundo real vai desencadear em uma estrutura dramática e rítmica a qual não estamos acostumados, que é o tempo não linear.
Agresti utiliza três aspectos de tempo neste filme: físico, psicológico e dramático.
O tempo físico refere-se ao tempo tomado por uma ação ao ser filmado e projetado na tela; tempo psicológico é a impressão subjetiva, emocional, de duração que o espectador experimenta ao assistir ao filme; tempo dramático é a compreensão do tempo levado pelos acontecimentos narrados, que ocorre quando são transformados em filme. (Debrix, 1969)
A proposta de Agresti neste filme de ação não linear é que a forma como o tempo passa na tela possa afetar nosso estado mental, provocando muitas emoções, “aqui e agora”, ao contrário dos filmes convencionais que suscitam emoções de acordo com o tempo real.
O tempo é um elemento marcante neste filme e que influencia tanto os personagens, como a história. O diretor neste filme fabrica o tempo e o espaço fragmentado, muito semelhante a mente humana e da forma como ela funciona, isto é, em “pedaços”.
Por meio deste mecanismo, o cinema tem a capacidade de transportar nosso “tempo psicológico”, fisicamente na tela.
Essas divisões do tempo em cinema se fundem e funcionam como um conjunto, mas para o espectador é apenas algo que acontece “agora” e com isso, o espectador pode ser estimulado a lidar apenas com as subjetividades do filme.
Este recurso técnico de cinema, chamado de “retrospectos”, pode ser usado de diversas formas e neste filme, o diretor usa cortes diretos sem preâmbulos, quando se configura a situação, em oposição aos filmes convencionais.
Para o cineasta francês Jean-Claude Carrière, no cinema os dias e as noites não se movem em uma seqüência regular como na vida. Eles nem chegam perto de uma tal seqüência. Existem até “dias e noites fílmicos”, que dividem o tempo de uma maneira única, que pertence exclusivamente ao cinema. (Carrière, 2006)
Todos nós temos consciência da passagem do tempo, que pode estar ligado à percepção inconsciente de nosso ritmo corporal, pulsação do coração, respiração etc.
O nosso tempo fisiológico funciona como se possuíssemos um relógio interior que já está programado em nosso genoma, e do qual nos damos conta quando o esquema habitual de nossas vidas é alterado, por exemplo, pela mudança de fuso horário. Esse relógio interior está localizado no hipotálamo, numa região do cérebro, que marca o nosso ritmo interno conjugando com o tempo cronológico. (Viver Mente e Cérebro, 5/2005).
E para falar do tempo psicológico, remete-se à seguinte metáfora: “O tempo é a substância de que sou feito, o tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio (...)”, de autoria do poeta argentino, Jorge Luis Borges. (Viver Mente e Cérebro,5/2005)
As nossas percepções, pensamentos e ações se desenrolam no tempo e organizamos este tempo, que é uma sucessão de momentos separados, no nosso consciente e inconsciente, como o rio de Borges.
Ao estabelecer uma analogia do nosso tempo psicológico com o do cinema, podemos constatar que a seqüência ininterrupta de imagens tematicamente ligadas, a narrativa visual e a música contribuem para narrar um filme. E o que há de comum entre a imagem e a música no cinema? O tempo cronológico que será construído de acordo com as intenções do diretor, do que ele pretende nos contar, nos mostrar em cada cena.
O MITO DE EROS E PSIQUÊ: AMAR SEM SE VER
Para Moacyr Scliar, médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, o passado é o depósito dos mitos e durante muito tempo a humanidade viveu com a noção de um tempo imobilizado, em que o passado, o presente e o futuro se misturavam e só com a modernidade surgiu uma nova concepção de tempo e espaço. O tempo social e o tempo psicológico são governados pelas fantasias coletivas e individuais, aliando-se aos mitos que fabricamos, fechando-se um ciclo. Nesse tempo imobilizado, no tempo dos mitos, surgiam coisas maravilhosas e também tragédias. (Viver Mente & Cérebro, 5/2005).
O mito de Eros e Psiquê é uma história antiga e foi registrada por Apuleio, poeta romano do séc. II depois de Cristo.
Conta a lenda que um rei tinha três filhas e todas as três muito bonitas. Porém, a mais nova destacava-se de maneira, que muitos supunham que ela fosse uma deusa vivendo entre os mortais.
A deusa Afrodite ficou sabendo sobre o que se passava na terra e resolveu se vingar. Afinal, não poderia haver mortal ou deusa mais bela do que ela. E os seus altares estavam ficando vazios porque os homens voltavam sua devoção à jovem virgem, chamada Psiquê.
A deusa chamou seu filho Eros, que era bastante ardiloso por sua própria natureza e pede que ele castigue a moça, fazendo com que ela se apaixone por um ser baixo, indigno e de sorte duvidosa.
Então, ele preparou-se para cumprir as ordens maternas. Há duas fontes no jardim de Afrodite, uma de água doce, outra de água amarga.
Eros encheu dois vasos de âmbar, cada um com a água de uma das fontes, e suspendendo-os no alto de sua aljava, dirigiu-se ao encontro de Psiquê, que estava dormindo em seus aposentos.
Derramou, algumas gotas de água da fonte amarga sobre os lábios da jovem e ao vê-la, quase fosse tomado de piedade, tocou-a de lado com a ponta de sua seta. Mas, ao contato, Psiquê acordou e abriu os olhos diante de Eros (ele próprio invisível) que, perturbado, feriu-se com sua própria seta. Descuidando-se do ferimento, o único pensamento do deus alado consistia em desfazer o mal que fizera e derramou as balsâmicas gotas de alegria sobre os sedosos cabelos da jovem e depois foi embora.
A duas irmãs mais velhas de Psiquê haviam se casado com dois príncipes herdeiros e também, tinham muita inveja da beleza da irmã mais nova, que em seus aposentos, deplorava de solidão e com uma beleza que, embora trouxesse uma prodigalidade de louvores, não conseguiria despertar amor em homem nenhum.
Os pais de Psiquê, receosos de que, inadvertidamente tivessem incorrido na ira dos deuses, consultam o oráculo de Apolo, que sentencia:
‘A virgem não se destina a ser esposa de um amante mortal. Seu futuro marido a espera no alto da montanha. É um monstro a quem nem os deuses nem os homens podem resistir.’
Essa terrível predição do oráculo encheu a todos de desânimo e os pais da jovem entregaram-se ao desespero, porém, ela se conforma e diz:
‘Por que lamentais, queridos pais? Devereis antes ter sofrido quando todos me cumulavam de honras indevidas e a uma voz me chamavam de Afrodite. Percebo agora que sou vítima daquele nome. Resigno-me e levai-me àquele rochedo a que me destinou meu desventurado destino.’
Assim, tendo sido preparadas todas as coisas, a donzela real tomou seu lugar no cortejo, que mais parecia um funeral que um casamento.
Os seus pais deixaram-na só e Psiquê estava de pé no alto da montanha, tremendo de medo e com os olhos rasos de lágrimas, enquanto Zéfiro (deus do vento) a levantou acima do solo e a conduziu suavemente até um vale florido. E pouco a pouco, a jovem acalmou-se e estendeu-se na relva, até adormecer.
Ao despertar, refeita pelo sono, olhou em torno e viu, bem perto, um lindo bosque de árvores altas e majestosas. Depois, entrou no bosque e, no meio dele, encontrou uma fonte de águas puras e cristalinas, e, mais adiante, um magnífico palácio cuja fachada dava a impressão de que não se tratava de obras de mortais, mas da morada de algum deus.
Tomada de espanto e admiração, a moça aproximou-se do palácio e aventurou-se a entrar. Cada objeto que viu a encheu de assombro. Colunas de ouro sustentavam o teto abobadado e as paredes eram ornadas de baixos-relevos e pinturas de animais selvagens e cenas rurais, representados de modo a deleitar os olhos do espectador.
De repente, Psiquê ouve a seguinte voz:
‘ Soberana dama, tudo que vês é teu. Nós, cujas vozes ouves, somos teus servos e obedeceremos às tuas ordens com a maior atenção e diligência. Retira-te para o teu quarto e repousa em teu leito.’
Psiquê atendeu às recomendações dos servos invisíveis; depois banhou-se e repousou. Ainda não vira o marido que estava destinado. Mas teve uma grande surpresa, porque a figura misteriosa chegou de madrugada e suas expansões eram repletas de amor e inspirou nela uma paixão semelhante.
Muitas noites se passaram e muitas vezes, Psiquê implorava ao marido que ficasse e deixasse olhá-lo, mas ele não consentia. Ao contrário, recomendou que não fizesse qualquer tentativa para vê-lo, pois ele tinha bons motivos para se esconder.
Psiquê só desfrutava de sua companhia ao dormir, porque de manhã cedo, o deus desaparecia e só retornava ao anoitecer, quando se deitavam e se amavam, sem se verem.
Certa noite, movida pela curiosidade e tendo seu esposo adormecido a seu lado, Psiquê escondeu uma faca debaixo de sua roupa (pensava que ele fosse um monstro horrível, conforme determinou o oráculo) e acendeu uma lâmpada para vê-lo.
Mas, a jovem ficou maravilhada com o adolescente que ali estava, tão belo quanto ela. Comovida com a agradável surpresa, Psiquê deixou cair uma gota de azeite no ombro de Eros, que assustado abriu os olhos e encarando Psiquê disse:
‘Não lhe imponho castigo, a não ser deixar-te para sempre. O amor não pode conviver com a desconfiança.’
Eros, cumprindo as ameaças que fizera, fugiu para não mais voltar. O problema era que a jovem Psiquê era amada pelo deus, porém, proibida de vê-lo e sem saber por quê.
A curiosidade e a desconfiança (foi insuflada pelas irmãs invejosas) foram os motivos de sua desgraça. Assim, o deus voa para longe.
Psiquê à procura do marido caminha noite e dia, sem repouso nem alimentação e nestas andanças encontra a deusa Deméter (deusa da vegetação) que a aconselha a proteger-se contra a má-vontade de Afrodite, a sua sogra e a conselha:
‘Vá e rende à tua deusa pedindo seu perdão, pela modéstia e submissão e talvez ela te restitua o marido que perdeste.’
Psiquê acata o conselho da deusa e dirigi-se ao templo de Afrodite, tentando fortalecer o seu espírito. A sogra recebe-a com a ira estampada na face e vociferando que viera ver o marido enfermo, ainda guardando o leito, em conseqüência da ferida que ela causou ao esposo.
Ordena a Psiquê que fosse ao celeiro de seu templo, onde havia grande quantidade de grãos para a alimentação dos seus pombos sagrados, e atribui-lhe a tarefa de ter que separar os vários tipos de grãos, como punição e a jovem tenta cumprir da melhor forma.
A verdade é que Afrodite não suportava a beleza de Psiquê e partiu para a vingança. Mas, Eros ao conhecer a jovem ficou perturbado com sua beleza e feriu-se com a própria seta e apaixonou-se imediatamente pela jovem, que eclipsava a beleza de sua mãe.
Eros não poderia deixar que Psiquê o visse, porque Afrodite não poderia saber de forma alguma que ele se encontrava com ela, portanto, ele não deixava que ela conhecesse sua face para não ser identificado e correr o risco de o casal sofrer castigo imposto por sua mãe.
Afrodite impôs várias tarefas à Psiquê para que pudesse obter novamente o marido. E a sua última tarefa era ir até Hades (deus que mora no mundo dos mortos), à procura de Perséfone e trazer um pouco da beleza desta deusa do mundo inferior.
Psiquê ficou certa de que sua morte era inevitável, obrigada a ir com seus próprios pés diretamente ao mundo dos mortos. Então, ela resolveu se suicidar e dirigiu-se ao alto de uma elevada torre, para de lá se precipitar, de maneira a tornar mais curta a descida para as sombras.
Mas surge uma voz vinda da torre que diz:
‘Por que, desventurada jovem pretendes por fim a sua vida de forma tão horrível?’
Depois a voz continuou:
‘ Quando Perséfone te der a caixa com sua beleza, tenha cuidado, acima de todas as coisas, para de modo algum abrires a caixa e não permitas que tua curiosidade descubra o tesouro de beleza da deusa’.
Animada por estas palavras, Psiquê seguiu todas as recomendações daquela voz e chegou sã e salva no palácio de Perséfone. Depois de admitida no templo da deusa e sem aceitar o delicioso banquete que lhe foi oferecido, contenta-se apenas com pão seco para alimentar-se, transmitiu o recado de Afrodite.
A caixa lhe foi entregue sem demora, fechada e repleta de coisas preciosas. E Psiquê voltou à superfície, pelo mesmo caminho e sentindo-se muito feliz.
Depois de vencer tantos perigos, foi dominada por intenso desejo de examinar o conteúdo da caixa e disse em voz alta:
‘Como? – exclamou Psiquê – Eu, transportando a beleza divina, não aproveitarei uma parte mínima dela para pôr em minhas faces e parecer mais bela aos olhos de meu amado marido?’
Assim dizendo, abriu cuidadosamente a caixa, mas nada continha ali e caiu num sono profundo.
Eros, já restabelecido de seu ferimento e não suportando a ausência de sua amada, passando pela janela de seu quarto, voou até o lugar onde ela estava e retirou o sono profundo de seu corpo. Também fechou a caixa e acordou Psiquê, com o ligeiro contato de uma de suas setas e disse:
‘ Mais uma vez quase morreste, devido à mesma curiosidade. Mas agora executa a tarefa que lhe foi imposta por minha mãe e cuidarei do resto – ordenou o deus-alado, que voou alto para o céu.’
Então, Eros rápido como o relâmpago, apresentou-se diante de Zeus, com sua súplica. O grande deus do Olimpo ouviu-o com benevolência e advogou com tanto empenho a causa dos amantes que conseguiu a concordância de Afrodite. Depois, mandou Hermes levar Psiquê à assembléia celestial e quando ela chegou, entregou-lhe uma taça de ambrosia, dizendo:
‘ Bebe isto e sê imortal. Eros não romperá jamais o laço que atou e essas núpcias serão perpétuas.’
Assim, Psiquê ficou finalmente unida a Eros e mais tarde tiveram uma filha chamada Prazer.
Esta lenda é considerada alegórica, e Psiquê em grego significa borboleta ou alma e não há alegoria mais notável e bela da imortalidade da alma do que a borboleta que, depois de estender as asas, do túmulo em que se achava, depois de uma vida mesquinha e rastejante como lagarta, flutua na brisa do dia, segundo o historiador americano, Thomas Bulfinch (2002), que nos contou esta lenda.
Apuleio quer nos transmitir a mensagem de que precisamos estar preparados para receber o amor, sendo este sentimento muito difícil de se viver apesar do desejo de encontrá-lo. E Psiquê representa a alma humana, purificada pelos sofrimentos e infortúnios e preparada para desfrutar da verdadeira felicidade do amor.
Reconhecer nosso tempo interno, para viver o amor e estar preparado para os estágios que passa o relacionamento amoroso pode auxiliar o casal a conectar-se de corpo e alma, como os casais Kate e Alex e Eros e Psiquê, que aguardaram o tempo certo para se encontrarem e se amarem verdadeiramente.
Segundo Robert Johnson, o psicólogo Carl Gustav Jung estudou o nexo entre os mitos e comportamento humano, em conexão com a estrutura da personalidade humana, como a expressão de padrões de personalidade e para ele, os mitos e suas lendas podem parecer arcaicos e distantes de nós, mas, ao observarmos as trajetórias que eles perpassam, são úteis na medida em que servem como modelos de conduta ao homem contemporâneo.
Num de seus mais profundos estudos, ele mostrou que, como geneticamente todo homem tem cromossomos e hormônios recessivos femininos, todo homem tem um conjunto de características psicológicas femininas, que se constituem num elemento minoritário dentro dele e que se chama anima. Da mesma forma, a mulher tem um componente masculino minoritário dentro dela chamado animus.
Psiquê simboliza o interior de cada mulher e sua ingenuidade. Ao ser amarrada na montanha, ela se apavora diante da morte. Depois, ao casar-se com Eros ela encontra o paraíso, seu marido-deus que deita com ela, mas todas as luzes são apagadas. Não olhar para ele e nem perguntar sobre seus atos é solicitado pelo marido e é o que muitos homens querem de suas esposas, mantendo o controle da relação. O casamento deve estar lá, firme quando ele quiser voltar para casa, sem ser um estorvo. O compromisso do casamento é diferente para o homem e para a mulher (Johnson, 1987).
Johnson acrescenta ainda que, um dos grandes dramas da vida da mulher é quando ela vê o marido como ele é de fato. Então ela verá um deus ou um arquétipo, caindo numa solidão intolerável. A fase do namoro (paraíso) pode demorar e intuitivamente, ela sabe que irá se deparar com a verdadeira faceta do amado, a sua natureza. Se ela quiser continuar no escuro (não enxergando), ela será antiquada. Mas, se ela optar em acender a lâmpada (consciência) terá tudo às claras.
Afrodite impõe algumas tarefas à Psiquê como a tarefa de procurar Perséfone, que mora com Hades (ou Plutão), na terra dos mortos e trazer a pomada da beleza, que simboliza a sua morte (psicológica), como uma passagem para a evolução. O sono ou a morte são símbolos comuns a mitos, segundo o autor.
Na partilha do mundo entre os Deuses Olímpicos, depois da vitória sobre os Titãs, Hades recebeu o domínio dos infernos e era assistido por várias auxiliares. Casou-se com Perséfone, depois de obrigá-la a passar um terço de sua vida no Inferno ao dar à ela uma fruta infernal, a romã.
Psiquê, ao tentar ficar com o ungüento (que representa a velha consciência) e usá-lo, foi a morte para ela. Talvez fosse a persona com a qual ela estivesse trabalhando até o momento. (Johnson, 1987)
Para o autor, Afrodite é regressiva, querendo sempre que as coisas voltem a ser como antes. Ela é a voz da tradição e não tolera competição, assim ela não tenta destruir Psiquê, faz o possível para vê-la crescer. O paradoxo da evolução nesta lenda é que Afrodite condena Psiquê à morte, mas ela é também a casamenteira que aventa a idéia do matrimônio. O empurrão para a evolução por meio do casamento, também traz o choro (regressivo) que é a perda da liberdade e independência que a noiva tinha antes. E as tarefas simbolizam os estágios de sua evolução (Johnson, 1987).
Quando um homem se sentir desencorajado, um simples olhar da amada pode induzí-lo a restaurar seu senso de valor. A maioria dos homens conseguem cimentar suas mais profundas convicções de valor próprio através da mulher (esposa, mãe, anima). A mulher vê o valor e o mostra ao homem, no instante em que acende a lâmpada. A mulher é portadora da luz. Mas, para ela chegar à sabedoria, a mulher terá que cumprir algumas “tarefas” como Psiquê, segundo Johnson.
Para James Hillman, o papel específico que Afrodite desempenha no mito de Eros e Psiquê será sempre crucial em qualquer comparação entre o amor masculino e o feminino, com respeito a seus efeitos sobre a psique. Psiquê é a sua serva, uma sacerdotisa ou uma mulher consagrada a esta forma de amor. Alguns a consideram uma representação mais jovem de Afrodite. Entretanto, nesta relação, a deusa da beleza é contrária à união do jovem casal. A oposição de Afrodite não é simplesmente o motivo folclórico da mãe malvada que age como um obstáculo ao amor. Essa história fala da diferença entre o amor “de Afrodite” e o amor psíquico. Sem dúvida, Afrodite pode reger o amor de homem ou mulher e não rege apenas um certo componente da feminilidade humana ou do sexo feminino (Hillman, 1984).
Embora Psiquê é considerada uma devota de Afrodite, ela deve encontrar seu próprio estilo de amar, que não é “afrodítico”, segundo Hillman.
Para Johnson a jovem perdeu sua preocupação narcísica com a beleza, inocência e pureza, ao aprender a lidar com as dificuldades da vida, com seus lados escuros e sombrios. Ela precisava morrer e deixar sua preocupação infantil com a beleza, que a distanciava de sua inteireza. Teve de descer nas regiões abissais (Hades), procurando o núcleo de seu inconsciente para conseguir amadurecer.
Para Johnson, as irmãs invejosas de Psiquê simbolizam a sombra da mulher, aquela voz interior desagradável. São importantes e cita Jung, que sinaliza a conscientização da mulher vem, muitas vezes, por sua faceta-sombra. O conselho das irmãs invejosas é que ela se arme de lâmpada e faca, sendo estes, dois símbolos masculinos. É útil a mulher compreender sua capacidade de utilizar somente a lâmpada, nos primeiros anos de casamento, para iluminar seu homem, seu valor, por meio do uso da lâmpada de sua consciência. Na pior das hipóteses, o homem fica sabendo quem ele é.
A lâmpada simboliza a consciência de Psiquê e ao acender a lâmpada, resgata a própria consciência, que aponta também para essa qualidade feminina de ser a portadora da luz. Como exemplo, um archote ilumina aos poucos, suavizando o ambiente. A luz solar é masculina e ilumina tudo ao mesmo tempo, podendo ofuscar a vista, deixando o homem perdido, momentaneamente, segundo Johnson.
Ele acrescenta ainda que a faca é aquela capacidade destruidora que a mulher tem para afogar o homem com uma torrente de palavras, ferindo seu ego e que se volta contra ela. Cortante e sarcástica, ela vem de faca na mão. Esta lenda trata da psicologia feminina e nos ensina que a mulher pode obter o poder, gradualmente. A regra é parar, observar e só então, tomar uma atitude. A maneira feminina de agir é esperar até que algo dentro dela lhe dê os sinais e a coragem.
Se o amor é uma ocasião sublime para amadurecermos, por causa de outro ser, Psiquê amadurece e nos mostra o quanto é importante o crescimento feminino em direção à sua individualização completa e adulta, segundo o autor.
Psiquê recebe o beijo do amor – F. 21
(Antonio Canova (1787), Escultura em mármore, Museu do Louvre)
(Antonio Canova (1787), Escultura em mármore, Museu do Louvre)
Eros (ou cupido) simboliza o marido ou o animus da mulher, a sua masculinidade interior. Ele é representado como uma criança porque simboliza a eterna juventude de um amor profundo, mas também uma certa irresponsabilidade. Em todas as culturas, a aljava, o arco e as flechas, significam que o Amor se diverte com as pessoas de que se apossa e domina, mesmo sem vê-las. Às vezes, ele é representado de olhos vendados (o amor é cego).
O deus alado também é filho de Afrodite e é dominado por ela. Possue a beleza da mãe, portanto, leva à perdição todos do Olimpo, incluindo o poderoso Zeus. Este é o sentido correto da tradução do oráculo quando se referiu ao monstro que se casaria com Psiquê. (Galdino, 1994).
Segundo Johnson, Eros também fez o máximo que pôde para manter sua mulher na inconsciência, prometendo-lhe o paraíso eterno. Desta maneira, procurou dominá-la, mas sem um relacionamento verdadeiro.
Para James Hillman, podemos atribuir nossa perda de identidade erótica à perda da distinção entre os deuses e entre o masculino e o feminino. A masculinidade passou a significar a rejeição do erótico como efeminado, conduzindo a uma compreensão grosseira de Eros ou à sua substituição pela sexualidade. E tudo recai sobre a mulher: sentimento, fantasia, amor, relação, inspiração e iniciativa.
Segundo este autor, Eros traz um pouco da luz e do sublime horror do divino para a alma, pois no amor somos o melhor e o pior de nós mesmos. Esse mito retrata a interação entre o amor e a alma, como um ritual que se realiza hoje entre as pessoas e no “íntimo de cada um”. A principal vantagem deste mito é que fala para as épocas e, portanto, também para a nossa, cujo amor é a necessidade da alma e Psiquê é a necessidade de Eros. Hoje sofremos e adoecemos por causa de sua separação.
Eros traduz a união dos opostos, o amor é a pulsão fundamental do ser, mas isso só ocorre mediante o contato com outro ser, através de trocas sensíveis, espirituais e corporais. O conflito entre a alma e o amor é simbolizado pelo mito de Eros e Psiquê.
Para Jung, o processo de conscientização é um caminho longo, onde cada pequeno passo à frente no sentido da consciência tem poder de criar mundos (Nobholz, 1996).
Para o psicólogo, o amor pode representar a chave para o processo de conscientização que possibilita abrir as portas para as mulheres. E o amor pode nos auxiliar a crescer como indivíduos maduros.
O lado negativo do amor é a dependência, a possessão, a manipulação, que são gerados pela sensação de desamparo que adquirimos quando crianças. Mas, a maturidade emocional “clareia” nossa mente e fortalece nosso coração, preparando-nos para viver este sentimento sublime.
O marido de Psiquê é uma figura muito misteriosa a quem ela nunca deve procurar ver, mesmo sendo amada por ele. Mas ela acaba por desobedecê-lo e descobre sua face e Eros a abandona; só depois de longa procura e sofrimento, ela consegue recuperar o seu amor.
Ele sofre de dependência materna, mas Psiquê consegue arrancá-lo dos braços da mãe e Eros acaba crescendo por si, decidindo sobre suas emoções. Para obter seu crescimento ele foi ousado e voou longe, para as alturas e profundezas.
Enquanto isso, Psiquê pode auxiliá-lo “clareando” seus caminhos (sua consciência), despertando no amado, os sentimentos, ajudando-o no seu momento de transformação, que também acarretou mudanças nela.
Segundo Jennifer Woolger, os homens se sentem atraídos não apenas pela beleza física da mulher, mas também pela sua sabedoria, no que tange aos assuntos do coração (Nabholz, 1996)
“Mas assim que a luz veio clarear a intimidade do leito nupcial, ela viu a mais terna e a mais doce de todas as feras,
justamente Cupido em pessoa, o formoso deus,
que formosamente repousava”.
(Apuleio, As Metamorfoses, livro V.22)
Referências:
® Bulfinch, thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
® Buonfiglio, monica. Almas gêmeas. São Paulo: Ed.Oficina Cultural Monica Buonfiglio Ltda., 1996.
® Carrière, jean-claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 2006.
® Debrix, jean r. O cinema como arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
® Galdino, luiz. Viagem ao reino das Sombras: mitos de Eros e Psiquê. São Paulo: FTD, 1994.
® Hillman, james. O mito da análise: três ensaios de psicologia arquetípica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
® Johnson, robert a. She – A chave do entendimento da psicologia feminina – uma interpretação baseada no mito de Eros e Psiquê, usando os conceitos psicológicos junguianos. São Paulo: Mercuryo, 1987.
® Jung, carl gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
® Magalhães, roberto carvalho de. O grande livro da mitologia: a mitologia clássica nas artes visuais. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
® Nabholz, maria teresa de barros. As faces eternas do feminino no cinema e na propaganda. São Paulo: TRIOM, 1996.
® Revista Mitologia ,n. 1, Thomas Bulfinch, Ed. Duetto.
® Revista Viver Mente & Cérebro, maio de 2005.
Filme/DVD:
A Casa Do Lago – 2006 – Diretor: Alejandro Agresti – drama – 99 min.
Fotos:
® Bulfinch, thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
Sítios:
® http://www.google.com.br/
® www.cinemacomrapadura.com.br
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LISTA DE FIGURAS:
1- Keanu Reeves e Sandra Bullock (capa)
2- Sandra Bullock
3- Keanu Reeves
4- Kate e Alex
5- A cachorra Jack e Alex
6- Kate Foster
7- Alex
8- Kate Foster
9- Os Amantes – René Magritte
10 – Alex e Kate
11- Psiquê e Eros
12- Psique no cortejo
13- Eros e Psique adormecida
14- Psiquê entrando no palácio de Eros
15- Psique acende a lâmpada
16- Eros foge de Psique
17- Psique no palácio de Afrodite
18- Eros acorda Psiquê do sono profundo
19- Eros e Psiquê
20- Psiquê acende a lâmpada
21- Psiquê recebe o beijo do amor
22- Eros
23- Eros foge de Psique
24- Estátua de Eros e Psiquê
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