Análise do filme: “O Passado” - cenas de um casamento


Gustav Klimt – O Beijo – 1907/08


O filme O Passado, uma produção de 2007, entre Brasil/Argentina foi escrito e dirigido por Hector Babenco e abriu a 31a. Mostra Internacional de Cinema, em outubro de 2007, em São Paulo. Apresenta os principais atores: Gael García Bernardes (Rimini), Analía Couceyro (Sofia), Moro Anghileri (Vera), Ana Celentano (Carmen) e Paulo Autran (Professor Pousière).
O longa-metragem baseado no livro do escritor argentino Alan Pauls, publicado em 2007, conta as histórias de amor do personagem Rimini, interpretado pelo ator mexicano Gael García Barnal, um jovem tradutor e a sua tentativa de se separar da mulher, depois de 12 anos de casamento. O filme discute a finitude desta relação e a dependência do protagonista em relação à ex-mulher.

Rimini e Sofia


Sofia foi sua amiga de infância e iniciaram o namoro muito jovens. Depois casaram e se separaram de forma amigável. Quando o filme começa, o casal anuncia a separação.
Rimini tenta seguir sua vida adiante, buscando o reconhecimento de seu trabalho e acaba encontrando um novo amor, a modelo Vera. Apesar de toda sua beleza, ela demonstra muita insegurança e ciúmes que desgasta o relacionamento.

Vera e Rimini


A consequência disso é que Rimini se apaixona por Carmen, tradutora como ele. Aparentemente, a nova esposa não se afeta com as aparições de Sofia. Mas, quando Rimini relata sobre seu encontro com Sofia e o sequestro do bebê, Carmen não o perdoa e o abandona.

Rimini e Carmen


A ex-esposa o assombra feito um fantasma, reaparecendo sempre em momentos importantes da sua vida. A divisão das fotografias que acumularam ao longo da vida e que tiveram em comum serve como desculpa para ela procurá-lo.
Ela não consegue suportar a ausência de Rimini e utiliza todas as armas que possui para trazê-lo de volta. Sofia não esquece o passado e atormenta o ex-marido insistentemente.

O autor do livro comentou, em entrevista, que:

“De todos os efeitos da separação, ao menos de todos aqueles de que tinha consciência, o único que verdadeiramente continuava a pegá-lo de surpresa era o fato de que o amor que ficara para trás, sinais ‘de outra vida’, como frequentemente gostava de chamá-la, tivesse sobrevivido à catástrofe”.

O trecho é uma reflexão de Rimini, protagonista do livro, que, espantado, deduz sua teoria do amor dizendo que não há passado nem experiência amorosa que não envolva uma dimensão de pesadelo. (jornal Folha de S. Paulo/Ilustrada 02/6/2007)
Para Alan Pauls, o filme de Babenco é uma versão “muito crua de seu romance, escrito num tempo de ironia e incredulidade, aí está uma de suas potências”. O livro revela uma crença de que a experiência amorosa é uma das poucas experiências de totalidade que existem na sociedade contemporânea, no sentido de que o amor pode continuar sendo vivido e percebido hoje como um todo, um pouco como era antigamente. O amor é a última utopia. (jornal Folha de S. Paulo/Ilustrada 02/6/2007)

Rimini e Sofia


O escritor acrescenta também que o amor é sinistro por excelência: “o menor contratempo, a trivialidade mais acidental pode transformar o idílio mais sólido em pesadelo”. E em relação à personagem Sofia existe a possibilidade do amor se converter em Amor, ou seja, em uma causa.
Hector Babenco em entrevista para o site da UOL revela que se identifica com todos os personagens, até com o cachorro que passa atrás de Sofia, quando Rimini sai da prisão (cinema.uol.com.br, acesso em 18/12/2007)
O ator Paulo Autran interpreta um professor francês que vai proferir uma palestra na Argentina. Na cena, Autran lê um texto em francês, que é traduzido para o espanhol, por Rimini e Carmen. O professor Pousière (Autran) anda com uma jarra de água por todos os lados e parece um maluco. O ator faleceu dias antes do lançamento do filme.

Carmen, Pousière e Rimini


O AMOR GEOLÓGICO E AS CAMADAS SENTIMENTAIS

O diretor não revela neste filme como Rimini se apaixona e quando ele já está imerso na relação amorosa, que percebemos o quanto ele sente que existe quando ama. O personagem vai acumulando relacionamentos, juntando camadas, que não são elaboradas e que acabam virando “pesadelos”. O protagonista não vive o período de luto como deveria, após cada separação e acaba não elaborando as perdas, o que lhe causa um sentimento de vazio e de fracasso, que tenta preencher com outro relacionamento o mais rápido possível. O gozo da herança afetiva ele não vive em nenhuma de suas relações amorosas e o que sobra é apenas culpa e frustração. O encontro com a mulher amada e o que fica da relação é esquecido e reflete em seu olhar vazio, um vácuo que ele preenche por meio de outro relacionamento amoroso.
O seu sofrimento neurótico fica oculto, encoberto pela nova paixão, cujo sentimento é de curta duração. Com o passar do tempo, a neurose reaparece com idêntica gravidade, ou ainda pior do que era antes. Rimini utiliza o sentimento do amor para ter coragem de viver. O amor é seu combustível para a vida e para neutralizar as suas feridas. Mas infelizmente o amor não cura ninguém.
Segundo o psicanalista Alberto Goldin: “O que ocorre na verdade é que a paixão neutraliza as frustrações, obtura os medos e cria uma posição ilusória de plenitude e felicidade contrária ao sofrimento neurótico” (Revista Viver, julho/2007)
Para Sigmund Freud (1856-1939), o luto saudável tem quatro etapas: o reconhecimento da separação (ou morte); acolher o sentimento de vazio (alguém em quem depositamos afeto desapareceu); aceitar o inconformismo e, finalmente, a herança. Essa é a parte mais sublime do luto porque ficam as memórias, os sentimentos, a beleza que experimentamos com aquele que partiu que sobrepuja os sentimentos de perda, para ser incorporado ao nosso eu, ao nosso psiquismo, a experiência amorosa já se inscreveu em nós, transformando as pessoas porque ficam mais enriquecidas e capazes de viver uma nova experiência de amor (revista do jornal Folha de S. Paulo, de 16/12/2007)

EM DÍVIDA COM O PASSADO

Alan Pauls menciona que o filme pode ser lido como a execução de um programa de retorno do recalcado. Entre Rimini e Sofia “há uma espécie de amor geológico, denso, feito de camadas sentimentais”, comenta Pauls (jornal Folha de S. Paulo, 02/06/2007)
O que o autor do livro quer nos dizer com o “retorno do recalcado” é que Rimini tenta recalcar, ou seja, excluir do campo de sua consciência, certas idéias, sentimentos e desejos em relação à Sofia. Ele não quer admitir que ela faz parte da sua vida psíquica e suscita o distúrbio da amnésia.

Sofia, Rimini e o bebê


A amnésia é uma situação patológica em que o indivíduo perde, total ou parcialmente, a memória. Esta situação pode ocorrer após algum trauma provocado no crânio da pessoa, por doença ou por trauma psicológico. Em termos fisiológicos, uma memória é o resultado de alterações químicas ou mesmo estruturais nas transmissões sinápticas entre os neurônios. Conforme ocorrem essas alterações, algumas vias são criadas. Estas vias são chamadas de traços de memória e podem percorrer pelo cérebro.
A cura da amnésia pode ser realizada por meio da psicoterapia, somada aos remédios específicos e obter bons resultados para reativar os conteúdos da memória.
Freud, em 1917, cunhou o conceito de “trabalho do trauma”, que consiste na regra terapêutica da necessidade fundamental de debater experiências traumáticas do paciente, de maneira exaustiva e profunda para que ele possa se livrar dos sofrimentos de sua alma. E aqueles que recalcam as experiências como separações ou morte do parceiro, por exemplo, estariam sempre em dívida com o passado, sofrendo com insônia e pesadelos. Freud recomendou que, ao resgatar o recalque, as lembranças reprimidas retornem ao consciente, por meio da Psicanálise ou da psicoterapia, porque os sentimentos marcam e constroem as lembranças (Freud, 1996)
Segundo a teoria freudiana a nossa tendência a esquecer o que é desagradável é inteiramente universal e a aptidão para isso tem graus diferenciados de desenvolvimento nas diferentes pessoas. (Freud, 1996)
O psicólogo George Bonanno recomenda que para superar o trauma, esquecer é tão importante quanto lembrar e elaborar a experiência. (Revista Viver, junho/2005)
Rimini sofre de amnésia, o que o incapacita de fixar na memória os eventos recentes, problema conhecido como amnésia anterógrada. Os portadores desse distúrbio se lembram de tudo o que aconteceu antes do trauma, mas dali em diante, não conseguem mais reter lembrança alguma.
O surgimento da amnésia no protagonista decorreu por vários motivos que somados, potencializaram o sintoma. O trauma da morte de Vera lhe rendeu a culpa e o esquecimento dos idiomas que precisa para traduzir seus textos.
Também surge um novo relacionamento com Carmen e o nascimento de seu filho, que foi difícil para ele se adaptar à sua nova realidade de marido e dependente da mulher.

Rimini e o bebê


Mas a sua separação com a terceira esposa causou a sua ruína total. Débil e dependente, vivendo um momento tão difícil na sua vida, a amnésia foi uma solução encontrada por seu inconsciente, como uma forma de se afastar de seu passado, que é insuportável para ele.
Rimini tornou-se incapaz fisicamente e mentalmente, em decorrência de sua doença, por motivos psicológicos. A perda temporária de sua habilidade em memorizar qualquer acontecimento recente detonou a sua queda (que pertence ao sintoma de seu recalque: culpa, ressentimento, frustração que foram alojados em seu inconsciente) e seu efeito será a sua regressão.
Como consequência disso, ele não tem condições de se alimentar sozinho, é carregado pelo amigo, como uma criança indefesa. O pai que poderia ajudá-lo neste momento difícil muda-se para outro país.
Sua amnésia era parcial, considerando que ainda se lembrava de seu nome, onde havia nascido e permanecera consciente do seu passado até o momento do acidente com Vera, sua segunda esposa. Refém de seu esquecimento e tendo que continuar a viver, como ficam as consequências de seus atos e escolhas atuais?
Antes da amnésia, Rimini não reagia aos acontecimentos em sua vida, era possuído por uma profunda letargia e insegurança. Agora depois da doença, não reage porque se depara com a perda da faculdade de lembrar e reconhecer suas próprias ações. Será que o destino quis lhe pregar uma “peça”?
Com ajuda de um amigo e por meio de cuidados com seu corpo ele é reabilitado. Mas o seu corpo virou uma ancoragem entre o prazer e os imperativos de seu ego, que continua frágil.
Ao se encontrar novamente com Sofia eles acabam se tornando amigos. Posteriormente, ainda sob o peso do passado, ele tenta se refazer por meio do reconhecimento das fotos antigas, que registraram momentos que sua memória apagou.
Rimini é profundamente inseguro, falta-lhe a confiança, mesmo que queira mostrar eficiência em seu trabalho ou quando rompe com a esposa, depois de 12 anos de um casamento. Ele também nunca se lamenta de nada, nem reage a nada, sendo vítima da própria insegurança e instabilidade emocional.
Depois, surge a amnésia que funciona como uma fuga (inconscientemente). Ele tenta não lembrar de nada, porque lembrar é, fundamentalmente, reconstruir os eventos do passado, o que ele não deseja, e a sua dívida com o passado configura-se em doenças.

O AMOR OBSESSIVO DE UMA MULHER

Segundo o diretor Babenco, o personagem principal do filme é Sofia: “Tudo acontece a Rimini porque existe Sofia. Senão todas as histórias de amor nas quais ele embarcou teriam chegado a outros fins, teriam tido outra dinâmica, outra dialética”. (revista SET, jul. 2007)
Sofia é uma mulher determinada e procura conquistar seus objetivos. Ela dá vida ao protagonista (e ao filme), mesmo com suas atitudes egoístas, que espelham a sua forma de amar, ou seja, é o amor obsessivo de uma mulher.
Com o passar do tempo, as relações amorosas do protagonista tornam-se trágicas, porque Sofia é manipuladora e torna sua vida um inferno ao interferir nos seus relacionamentos amorosos, porque Rimini é débil e dependente dela.
Este filme tem todos os elementos de um melodrama e também de uma narrativa mitológica, como o ciúme, a vingança, a morte, o abandono e o retorno. E Sofia suscita a imagem da deusa da mitologia grega Hera, casada com o grande Zeus.
Vamos relembrar a lenda deste casal mítico, relatada pela escritora mexicana Martha Robles (2006).

HERA E O MITO DA ESPOSA IDEAL

Estátua da deusa Hera


Hera e Zeus seguem para o Renascimento, como a representação da psique humana, por meio dos arquétipos.
Hera, filha mais velha de Cronos e Réia nasceu na ilha de Samos, onde Cronos devorava vivos seus filhos, assim que saíam do ventre sagrado, para que nenhum deles pudesse obter a dignidade real que ele ostentava sobre os imortais.

Seu pai Urano, e sua mãe Terra, haviam profetizado que um de seus descendentes o destronaria. Em seu destino já estava traçado a condenação de sucumbir pelas mãos de Zeus e sempre à espreita e com a mente astuta, o Tempo devorava um após o outro seus filhos, assim que Réia os dava à luz.
Antes de parir o último deles, que era Zeus, a deusa buscou a proteção de seus pais para salvá-lo. Abrigada pelo cair da noite, Réia foi enviada por Urano e Gaia à terra de Licto, onde nenhuma criatura projeta sombras, para que pudesse parir e ocultar o recém-nascido em uma caverna escarpada rodeada por árvores, próximo ao monte Egeu, de onde se atingiam as entranhas da Terra.
Ali, depois de ser banhado no rio Neda, o pequeno Zeus permaneceu em Creta, vigiado pela avó, onde foi criado com leite e mel em um berço de ouro, pela ninfa-cabra e pela ninfa-freixo, ao lado do cabrito Pan, seu aliado e irmão adotivo. Sua infância transcorreu em meio a hábeis artimanhas para que seu pai não o encontrasse e dali só saiu quando finalmente se achava preparado para vencê-lo.
Vítima da argúcia de Réia, Cronos engoliu uma pedra envolta em lençol crendo assim, que triunfaria sobre os ditames do Destino. Depois ele descobriu o logro e pôs-se a perseguir o menino. Zeus, disfarçado de seu copeiro e seguindo os conselhos de Métis, misturou sal e mostarda à sua bebida doce, para que vomitasse a multidão dos filhos que conservava em seu estômago. Foi essa pedra emblemática, antes mesmo dos seus irmãos e irmãs mais velhos, a primeira coisa a ser expelida por Cronos durante sua legendária náusea, e que definiu a posterior batalha contra os Titãs, que entronizou os olímpicos, a segunda e mais perdurável geração de deuses.
Logo a seguir, por haver libertado os cíclopes que Cronos havia confinado no Tártaro, estes recompensaram Zeus com o trovão, o relâmpago e o raio, até então ocultos entre as “rugas da Terra”, ou de Gaia. Hades deu-lhe o elmo da invisibilidade e Poseidon ofereceu um tridente àquele que viria a ser o Pai do Céu.
Onde termina o mito de Cronos, que eleva o de Zeus, começa o de Hera que não era ninguém até que se casasse com o deus supremo do Olimpo. Talvez tenha sido cortejada por Zeus na Argólia, que disfarçado de cuco, uma ave trepadora que costuma colocar seus ovos nos ninhos de outros pássaros a seduziu.

Hera conversava com o pássaro e lhe confiava seus sonhos até que, de repente, Zeus assumiu sua verdadeira forma para violá-la, enchendo-a de vergonha e desespero.
Hera resolveu aceitar o pedido de casamento do irmão e passaram as noites de núpcias na ilha de Samos, que durou trezentos anos, semeada de intrigas e humilhações recíprocas.

Hera e Zeus


Hera banhava-se na fonte de Cânatos que ficava nas proximidades de Argos, buscando recuperar a virgindade. A deusa acreditava que o matrimônio é a consumação da satisfação feminina e com a sua fidelidade, apesar dos maus-tratos de Zeus, poderiam ser felizes para sempre.

Mas, como ela era muito ciumenta, vagava pelos arredores do Olimpo a fim de coletar evidências da lascívia de seu marido. Esta deusa é privada de todos os seus atributos, exceto o dom da profecia, que exerce através da boca de humanos e de animais para se vingar dos filhos e das muitas amantes de Zeus.

SOFIA E O ARQUÉTIPO DE HERA

A deusa Hera


À primeira vista, o vínculo matrimonial de Hera e Zeus parece uma relação de amor e ódio; mas na realidade, a deusa cultiva a posse do marido de forma aviltante, com perseguições e chantagem. Este é o arquétipo de Hera que reflete em Sofia.
Semelhante às atitudes desta deusa, Sofia manipula o ex-marido mediante pressões que começam com prantos sutis e vão-se se transformando em ciclos de fúria e recriminações, até o rancor vir à tona, atribuídas às traição e o abandono.
Rimini acaba cedendo aos desejos da ex-esposa, ao contrário do grande Zeus, que fique bem claro.
O mundo de Sofia adquire sentido somente em função de Rimini e se justifica dizendo que a união matrimonial é sagrada, mesmo que tenha que viver à sombra do marido.
Sofia e Hera são rendidas pelo ciúme e obcecadas por traições, o que as torna mulheres feridas e furiosas.
Hera vive a ruminar seus fracassos ou empreende longas viagens a fim de recuperar a confiança perdida em consequência de suas malvadezas. De volta ao seu assento mítico, seus hábitos também retornam, como por exemplo, ao vigiar disfarçadamente o seu marido.
Para Robles (2006), não é raro encontrar Hera representando um papel de intermediadora social (como Sofia com o grupo de mulheres), até mesmo quando adota as piores monstruosidades contra outras deusas ou mortais. O arquétipo de Hera pode ser reconhecido nas atitudes de cada mulher da atualidade, quando ela repete na intimidade com o parceiro, os ciclos de vingança e revolta marital que dariam margem ao estabelecimento do patriarcado característico de nossa cultura, segundo a autora.
A deusa é um arquétipo eterno da psique humana, embora desprezemos e reprimamos ou neguemos exteriormente a sua existência. Desde os primórdios da nossa civilização, ela se revela a nós em desenhos rupestres e em esculturas primitivas, nas grandes mitologias, manifestando-se na nossa cultura atual sob os mais diversos disfarces, segundo o autor Adam McLean. (McLean, 1998)
A palavra “arquétipo” vem do grego archein, que significa começar, e tipos, significa modelo. Esta palavra foi usada primeiramente por Platão e passou a representar as idéias platônicas e o mundo das Formas, ou seja, tudo que está acima e fora do mundo físico que vivemos. Este mundo arquetípico de Platão contém a essência, o lado espiritual de tudo que possui a encarnação física (McLean, 1998).
Segundo o autor, Hera estabelece o arquétipo da relação homem-mulher numa sociedade patriarcal, como esposa e companheira ideal. Assim, é uma deusa do casamento, da maternidade e da fidelidade, guardiã ciumenta dos votos do matrimônio e da hereditariedade. Durante o período patriarcal, Hera foi elevada a esse papel como protetora da esposa ideal, mas podemos entrever aí as marcas da sua forma anterior de deusa tríplice. A deusa é tríplice porque carrega as três facetas ligadas às Estações e às fases da Lua. Em sua mais remota presença no mito ela é associada a vaca, o que revela o seu vínculo com a fecundidade e com o nascimento, que os gregos associavam de maneira especial com esse animal. Hera renovava anualmente a sua virgindade banhando-se na fonte Cânatos, perto de Argos, local consagrado especialmente a ela. A deusa traz o arquétipo da eterna renovação, semelhante ao ciclo da própria Lua por suas fases. Com esse ato, ela une o ciclo menstrual e o ciclo anual da vegetação, nos explica McLean. (1998)
O autor acrescenta ainda que os deuses não podem manifestar-se no nosso intelecto; eles só podem vir à existência na substância astral de nosso ser, que se mantém livre das forças enrijecedoras do mundo material, e permite que as energias espirituais construam estruturas fluidas o bastante para refletir em nós a sua sutil natureza espiritual.
Zeus e Hera são princípios que se associam dentro do mito, como homem e mulher dentro do casamento. Zeus está presente no homem, como Hera está presente na mulher e na cultura em geral. O casal é um tema universal e a maneira como vai acontecer depende da versão que é relatada, segundo o autor.
Hera se completa com Zeus e seu objetivo é manter o marido próximo e a necessidade constante de vigiá-lo é devido ao seu ciúme que não é infundado. A sua dedicação ao deus supremo é sua maior vantagem. Mas o seu ciúme não é um sentimento voltado para o outro, mas para si própria, pois ela se define como possessiva e o medo de perder o outro ou a exclusividade sobre ele, como no caso de Sofia.
A deusa também possui seu lado obscuro impondo suas vontades, como no caso de Hércules, quando realizou os 12 trabalhos a mando de Hera.
As imagens arquetípicas são essências dos mitos, que são verdades universais, uma construção da cultura grega. Os mitos surgem e nos alertam, mostrando caminhos que a nossa razão é incapaz de detectar, segundo McLean. (1998)

Sofia considera o casamento, o caminho que a mulher deve percorrer e principalmente, resgatar a relação com o companheiro que perdeu (mesmo que não tenha nenhuma chance de reconciliação). Ela estabelece um pacto consigo mesma, inconscientemente, de lealdade com Rimini.
As aparições de Sofia na vida do ex-marido são como um fantasma, são como as fotos dos mortos (que ela não quer guardar) que assombram. Os insultos, a agressão verbal e a falta de respeito mútuo sinalizam que a relação está deteriorada. Suas idas e vindas funcionam como uma encarnação da solidão e do medo diante da vida, e que ambos sentem. É a condição humana desamparada e perplexa. Aquele inferno a dois é apesar de tudo, mais acolhedor que a solidão.
Segundo Julio Cabrera, o desamparo primordial parece dar a solução para esse desprezível enigma. O pior e o melhor de nós mesmos vêm desse desamparo, do medo de depois de ter nascido, ter de morrer. Os outros são mediações entre o maior apego e o maior distanciamento, entre o amor e o ódio, entre a necessidade e o desprezo. Na verdade, os outros não são precisamente o inferno, mas uma espécie de corporificação eventual do inferno, que de fato tem muitas caras. (Cabrera, 2006)
Na relação deve prevalecer um senso de igualdade, não a igualdade de conhecimento, experiência ou habilidade profissional, mas igualdade de importância e de dignidade, onde cada ser humano respeita integralmente o outro. O casal deve permanecer junto porque é prazeroso e não porque necessita do outro, numa mórbida dependência.

MULHERES NUM ATAQUE DE NERVOS

No filme, as mulheres reagem insanas, desesperadas, mas reagem. Elas decidem a relação com Rimini e não o contrário. Mas, estas mulheres surgem como figuras negativas que irão ocasionar a sua queda, porque ele cede o seu desejo por elas, numa permanência passiva e sem controle. Parece que a justificativa do personagem para sua “obediência às mulheres” é que todos os obstáculos da vida a dois serão suplantados no futuro, como uma mágica, sua grande utopia.

Sofia tenta não olhar para trás, ou seja, as lembranças desagradáveis sãos recordações atiradas no abismo, permanecendo no passado (e no inconsciente). As experiências negativas que viveu com Rimini não são suficientes para que ela desista da relação. Ela prefere um casamento enfermo, desestruturado, como a deusa Hera. Isso só serve para que ambos amplifiquem os defeitos da personalidade de cada um.
Rimini defende, inconscientemente, a sua total obediência às mulheres.
E Sofia, por meio de suas chantagens, acredita no retorno do ex-marido.
São idéias errôneas que faz que ambos se percam no caminho que poderia levá-los de encontro ao amor verdadeiro e maduro.
O autor Alan Pauls defende a idéia de que “O amor é uma das poucas experiências humanas que ainda representam um Todo”. (jornal Folha de S.Paulo/ Ilustrada, 13/10/2007)
Este filme foi pouco comentado pela crítica e revela o quanto as reminiscências de um passado podem trazer transtornos para o presente do indivíduo, impedindo que ele viva um futuro melhor. E como dizia Shakespeare:

“Atiramos o passado ao abismo,
mas não nos inclinamos para ver
se está bem morto.”


REFERÊNCIAS

CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
FREUD, Sigmund. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901) – edição Standard Brasileira das Obras. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
MCLEAN, Adam. A deusa tríplice – em busca do feminino arquetípico. São Paulo: Cultrix, 1998.
ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos. São Paulo: Aleph, 2006.

FILME
O PASSADO – DVD – roteiro e direção de HECTOR BABENCO. São Paulo, 2007.

PERIÓDICOS
FOLHA DE S. PAULO. Cad. Ilustrada, 02/6/2007 // 13/10/2007
Revista da FOLHA. 16/12/2007.
Revista VIVER MENTE & CÉREBRO - jun.2005; jul.2007.
Revista SET - julho/2007.

SÍTIOS CONSULTADOS
www.globo.com Acesso em: 17/12/2007.
http:wikipedia.org/wiki/Amn Acesso em 12/12/2007.
www.espacoacademico.com.br – Acesso em: 18/12/2007.
www.cinema.uol.com.br – Acesso em: 18/12/2007.
www.cinemacafri.com/filme - acesso 17/12/2007 Acesso em: 17/12/2007.
www.noticias.yahoo.com – Acesso em:17/12/2007.

IMAGENS EXTRAÍDAS DOS SÍTIOS
www.google.com.br Acesso em 23/01/2008
www.opassado.com.br Acesso 23/01/2008
www.adorocinema.com.br Acesso 23/01/2008

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