Análise do filme “Instinto Selvagem 2” e uma reflexão sobre a sedução, o ciúme e a violência
O filme Instinto Selvagem 2, produzido em 2006 pelos EUA, Alemanha, Inglaterra e Espanha, foi dirigido por Michael Caton-Jones, com o seguinte elenco: Sharon Stone, Charlotte Rampling, David Morrissey e David Thewlis.
O suspense se passa em Londres e narra a história de um psiquiatra que é designado para fazer uma avaliação psicológica da escritora Catherine Tramell, que esteve envolvida na morte de um astro do esporte.
A enigmática Catherine Tramell escreve sobre sexo, violência e morte e estes temas acabam levando-a a ser suspeita de vários crimes que ocorrem na cidade. Linda, sedutora, com uma personalidade complexa e confrontadora, como os personagens de seus livros, ela seduz o psiquiatra, Dr. Michael Glass, durante as sessões de terapia e aproveita para colher subsídios para o seu próximo livro: O Analista.
O psiquiatra, Dr. Glass, ao conhecer a Srta. Tramell sente uma forte atração por ela, contrariando os conselhos de sua mentora e analista, Dra. Melina. A doutora pede que ele transfira a paciente para ela, mas o psiquiatra fica obcecado pela escritora e aguarda, impacientemente, durante os cinco dias da semana, pela sua visita, embora, ela já havia desistido do tratamento. Enredado em uma teia de sedução e ciúme, que vai corrompendo seus princípios morais, profissionais e sua lucidez, o médico acaba encerrando sua carreira, num hospício, como paciente.
“Cuidado, meu senhor, o ciúme é o monstro de olhos verdes, que debocha da carne com a qual se alimenta.” (Shakespeare)
A frase da peça de William Shakespeare, Otelo, escrita no século XVII, ainda hoje pode ser utilizada como uma metáfora do ciúme. O personagem Otelo, da peça de Shakespeare, era um general mouro, já idoso, a serviço da cidade de Veneza, casado com a jovem Desdêmona.
Iago, um de seus homens, tem ciúmes do jovem oficial Cássio, que Otelo parece preferir e trata de convencer o general de que Desdêmona e Cássio mantêm uma ligação.
E, aí, se configura a tragédia: Otelo mata a mulher e se suicida.
Otelo é uma das obras clássicas sobre o ciúme, um sentimento que resulta de uma variada combinação de ódio, frustração e desamparo. Este sentimento, “monstruoso e de olhos verdes”, tem um olhar cheio de suspeitas, raivoso e desconfiado. Resultado de um amor inquieto e do desejo de posse da pessoa amada, repercutindo numa suspeita ou a certeza de sua infidelidade.
O psiquiatra, Dr. Glass, ao apaixonar-se por sua paciente torna-se uma vítima e, ao mesmo tempo, o algoz do ciúme. Ele tenta matar a Srta. Tramell, tomado pelo próprio narcisismo, insegurança e falta de controle.
Traçando um paralelo entre o mouro de Veneza e o psiquiatra do filme, ambos são acometidos da suspeita de terem sido traídos, enganados.
No drama inglês, Otelo depois de assassinar a esposa, se suicida, cravando o punhal no próprio peito. A mulher, porém, não cometera adultério. Mas, como o mouro estava cego de ciúme e influenciado pelo invejoso Iago, deixa-se levar pelo que considera ser prova da infidelidade da mulher.
Dr. Glass tenta estrangular a amada e depois, numa segunda tentativa, tenta assassiná-la com um tiro, mas a polícia o detém no momento em que ele vai puxar o gatilho.
O senso comum considera este sentimento um sinal de amor. Pode até ser, mas, quando ele aparece diante da amada ou do amado, como “um monstro de olhos verdes”, a situação é preocupante e as complicações inerentes a este sentimento são complexas.
A teoria sociocognitiva, uma vertente da Psicologia, oferece uma explicação direta para as consequencias deste sentimento, a hipótese é de que o ciúme surja como uma proteção, devido à percepção de que um rival em potencial representa uma ameaça àquilo que a pessoa considera valioso para si mesmo e num relacionamento importante. Essa perspectiva do ciúme é compatível com a já aplicada a outras emoções sociais e morais, como a raiva.
Segundo essa visão, as emoções têm uma forma primordial que a evolução imprimiu fisicamente no sistema nervoso, bem como uma forma “elaborada” que reflete normas e significados culturais, como, por exemplo, os homens achariam a infidelidade sexual mais insuportável, porque a mulher não faria sexo com outro homem se não estivesse apaixonada por ele.
As mulheres, por sua vez, sabem que os homens fazem sexo mesmo quando não há relação de afeto, portanto, a infidelidade sexual do homem não implicaria necessariamente em infidelidade emocional.
Mas elas sabem também que, o risco de perder o parceiro é maior quando ele faz sexo com outra por quem esteja apaixonado a infidelidade sexual masculina é uma ameaça maior para as mulheres. Assim, as mulheres escolheram a infidelidade sexual como o gatilho mais poderoso do ciúme. Algumas teorias que consideram o ciúme como um mecanismo psicológico, apresentam duas vantagens: de um lado, elas oferecem a flexibilidade que explica as diferenças do ciúme entre as várias culturas. De outro, abordam o ciúme fora do contexto do acasalamento, evitando definir separadamente emoções que, muitas vezes, são muito semelhantes, segundo a revista Viver Mente & Cérebro (2006).
A personagem Tramell é obsessiva por sexo e segundo algumas teorias da psicologia, as mulheres com vida sexual ativa, reagem mais fortemente à possibilidade de infidelidade sexual, sugerindo um padrão de respostas semelhante à dos homens.
Tanto os homens quanto as mulheres reagem mais vigorosamente à infidelidade sexual que à emocional, pelo menos, quando ambos já tiveram experiências reais de relacionamento.
As pesquisas, também, indicam que os homens cometem todas as formas de crimes violentos, inclusive assassinatos, em índice maior do que o das mulheres.
Quando o assunto é o ciúme, os estudos na linha evolucionista sugerem que não há diferenças importantes entre os sexos na expressão dessa emoção no contexto conjugal. A seleção natural parece ter moldado mecanismos gerais destinados a operar em uma grande variedade de contextos e não apenas nas relações amorosas.
Os pesquisadores da abordagem evolucionista concluem que o “monstro do ciúme” resida no coração de homens e mulheres e que habita a mente humana desde muito antes de estarmos aptos para o romance e o sexo.
Os psicólogos dizem que é possível entender o ciúme como uma manifestação do ser humano, tão normal quanto a raiva, o medo ou a inveja. Há, entretanto, fatores a considerar, como a origem do sentimento, sua intensidade, duração, a maneira como a pessoa que sente e reage diante dele, a importância que assume no cotidiano e as interferências que provoca, não apenas na vida cotidiana do ciumento mas também, daqueles que o cercam.
Os sintomas mais comuns são as fantasias que provocam o descontrole emocional e a labilidade. A labilidade emocional ou instabilidade afetiva é um estado especial em que se produz a mudança rápida e imotivada do humor ou estado de ânimo, sempre acompanhada de extraordinária intensidade afetiva. Esta forma súbita de reagir diante dos estímulos do meio exterior revela pessoas incapazes de controlar a intensidade de suas reações.
O médico alemão Kurt Schneider (1887-1967) descreve um tipo de Transtorno de Personalidade caracterizado essencialmente pela labilidade afetiva. Admite que é possível observar uma forma de personalidade, na qual, embora o estado de ânimo permanente não seja de tipo depressivo, existe tendência periódica a reações depressivas intensas, com os traços fundamentais de mau humor e irritabilidade, como, por exemplo, o quadro clínico do Dr. Glass.
Quando o ciúme é patológico vai aparecer como uma preocupação excessiva e infundada, não necessariamente num contexto de relação amorosa, podendo caracterizar-se por meio de vários sintomas, como transtornos de personalidade, depressão e obsessão, conforme citado.
O alcoolismo, também, pode ser um diferencial que leva o ciumento a ver os fatos triviais como provas de veracidade, em decorrência de seu delírio. E os crimes passionais, somados a atitudes impulsivas, violentas e egoístas, também, fazem parte desse quadro patológico do ciumento.
Hoje em dia, quando alguém confessa que sente ciúme, pode ser considerado um fraco; então, muitas vezes, o ciúme é negado ou suprimido. Assim, o indivíduo com medo e vergonha não procura o tratamento adequado.
Para o médico inglês, Havelock Ellis, é quando saímos debaixo das asas protetoras dos pais, que o ciúme se torna dolorosamente aquilo que ele chamou de: “o dragão que mata o amor sob o pretexto de mantê-lo vivo”.
Sigmund Freud (1856-1939) e outros psicanalistas viram o ciúme como o resultado de uma excessiva dependência do outro, da falta de autoestima, e derivado do amor infantil que a criança sentia pelos pais, e o medo do abandono. Na mente infantil, este sentimento ficou recalcado e pode surgir, novamente, na idade adulta.
A Psicanálise propõe a transformação da forma infantil de amar, fazendo que o paciente aprenda a elaborar o ciúme dentro de si, a ponto de eliminá-lo. Este sentimento é mais grave que o simples abandono, diz-se que os amantes têm uma relação narcisista, ou seja, olham-se embevecidos assim como Narciso (mito grego), que, fascinado com sua própria imagem, se afogou no lago. Ao observar-se no espelho dos olhos do outro, o amante se vê, simultaneamente, a si e ao outro.
A ideia é que se minha amada não me vê, porque está olhando para outro, o espelho não me reflete, ficando vazio o meu lugar.
O indivíduo é resultado do amor e da dedicação que os pais lhe retribuíram na infância, assim, o afeto é essencial. Perdê-lo é mortal e sempre se perde por causa do outro, como, por exemplo, a rivalidade entre irmãos. Nesse sentido, o ciúme é uma referência a esse instante da vida, quando dependemos do amor dos pais. Construímos nossa identidade calcada no cuidado e no afeto. Como resultado dessa construção, haverá uma interdependência intensa entre amor e ser. Em situações extremas, quem não conseguiu autonomia suficiente, somente pode “ser”, quando for “amado”.
Nossa identidade depois de construída na infância, também, é estável na vida adulta. Porém, as paixões ardentes podem “derreter” nossa forma de agir e pensar.
Em alemão, a palavra Eifersucht (ciúme) faz alusão ao fogo, a queimar. Eifer remonta à raiz indogermânica ai=arder e sucht é um termo antigo usado para designar doença, dependência. Portanto, ciúme é a doença que arde.
Há quem se derreta de amor e, uma vez derretido, adquire a forma do outro. Deixou sua identidade para assumir a outra identidade.
Mas essa mesma dissolução é perigosa quando o amado nos abandona, porque ficamos perdidos, sem referência e sem forma.
Então, o ciumento não só está preocupado em recuperar seu amado, mas também em reencontrar-se, pois perdeu o espelho no qual se refletia, tal como Narciso.
Portanto, quanto melhor elaborarmos essa dependência infantil do outro, mais autônomos conseguimos ser e sentiremos, então, menos ciúmes.
Em Fragmentos de um discurso amoroso, o escritor e semiólogo francês, Roland Barthes (1915-1980), descreve o ciúme e revela contradições de um sentimento com variados graus de intensidade, mas que pode ser traço de personalidade ou doença:
“Como ciumento sofro quatro vezes: porque me reprovo por sê-lo, porque temo que meu ciúme machuque o outro, porque me deixo dominar por uma banalidade; sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum”. (Roland Barthes)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. Barthes, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso.
2. 3. Shakespeare, William. Otelo, escrita no século XVII.
4. Viver Mente & Cérebro, Revista, nov/2006.
5. Fotos extraídas dos sites: www.filmes.net/instinto2 // www.google.com.br
Ficha técnica:
Título: Instinto Selvagem
Direção: Michael Caton-Jones
Ano: 2006
DVD, 114 min.
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