Análise do filme A COR DO PARAÍSO

A questão da deficiência e os  aspectos psicossociais na criança

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Mohamed

 

Em sua última carta escrita em 1832, Goethe reflete:

“Os antigos diziam que os animais aprendem por meio de seus órgãos, permitam-me acrescentar que, também os homens o fazem, mas têm a vantagem de, em troca, ensinar seus órgãos”.

(Revista Viver Mente & Cérebro, setembro, 2007)

O Filme A Cor do Paraíso produzido no Irã, em 1999, com roteiro e direção de Majid Majidi, o mesmo diretor de Filhos do Paraíso apresenta os principais atores: Mohsen Ramezani (Mohamed), Hossein Mahjub (Hashem), Salame Feizi (Franny, avó de Mohamed).

Segundo o crítico Marcelo Janot, quase toda a cinematografia recente do Irã está atrelada a histórias sobre crianças. Isso se deve ao fator econômico, considerando que a maior parte dos filmes são financiados pelo Ministério da Criança e do Adolescente.

A censura no país foi atenuada, depois da morte do aiatolá Khomeini. Por meio da Revolução Islâmica, a censura foi instaurada em 1979.

O enredo conta o drama de Mohamed, uma criança de aproximadamente 10 anos, que tem deficiência visual e luta para ser aceito e amado pela família e pelas pessoas no local onde vive, numa região rural, próxima de Teerã.

O menino utiliza os demais sentidos, como a audição e o tato, para se comunicar com as pessoas e a natureza, como, por exemplo, quando ouve o som dos pássaros na praia, julga que pode se comunicar com as aves. Sua atenção auditiva auxilia-o a “enxergar” a natureza tornando-se íntimo dela.

Privado da visão, sua percepção auditiva e tátil é intensificada e Mohamed constrói seu mundo, a partir de sua sensibilidade e, como consequência, desenvolve ao máximo seu “olho interior”, compensando assim, o sentido da visão.

A audição e a visão são os nossos sentidos mais importantes. A organização temporal fica no presente, e a experiência é imediata. O som é o canal que nos avisa sobre o perigo. Nos dá a informação do que está além do mundo amplo e que não temos acesso. Construímos um mapa e, através do som, sabemos o que acontece além de nós mesmos.

Mohamed, com sua personalidade carismática, conseguia detectar a falsidade das pessoas e encontrar possíveis traidores por meio de seus “ouvidos” infalíveis. O aguçamento de seus sentidos possibilitava-lhe perceber o humor das pessoas e as nuanças mais delicadas da fala, descortinando-se, assim, os estados emocionais alheios.

Depois de passar alguns anos em uma escola para crianças com deficiência visual, finalmente, ele pode voltar para casa. Mas, seu pai demora a ir buscá-lo, fato que o leva a perceber certo sentimento de rejeição paterna.

Seu pai é um viúvo que pretende se casar novamente e teme que a deficiência do filho impeça que a família da noiva o aceite nestas condições. Então, leva o filho para ser aprendiz em uma carpintaria cujo proprietário também é cego. A presença do filho portador da deficiência o envergonha. Tenta por várias vezes eliminar a presença do filho, com o objetivo de resolver “seus problemas”, tratando-o como se ele fosse um estorvo. Hashem é um homem rude, egoísta, preocupado apenas com seus interesses. Ele perdera a esposa há cinco anos.

Mohamed é portador de uma sensibilidade muito desenvolvida e, através dela, tenta desesperadamente ser amado, até que num momento de desespero, ele confessa ao carpinteiro: “Ninguém gosta de mim, só porque sou cego. Nem mesmo a vovó...” Mas, ele se engana, pois a sua avó é uma figura muito especial, ela compensa a ausência de sua mãe, amando-o acima de qualquer coisa. Ela diz ao neto: “meu filho eu morreria por você”.

Segundo Ana Cláudia Bortolozzi Maia: “entendemos por deficiência uma série de condições gerais que limitam a vida de uma pessoa do ponto de vista biológico, psicológico ou social. Essas condições podem prejudicar, limitar ou diferenciar, de forma isolada ou múltipla, o desenvolvimento nos campos cognitivo (deficiência mental), sensorial (deficiência auditiva e visual) e motor (deficiência física). Entretanto, o grau de comprometimento não pode ser determinado a priori, com base num diagnóstico. É preciso considerar o contexto cultural em que o indivíduo está inserido e os aspectos educativos que podem contribuir para o desenvolvimento de diferentes habilidades” (2006).

A definição de deficiente aqui utilizada evidencia toda alteração do corpo ou aparência física, de um órgão ou de uma função, qualquer que seja sua causa; em princípio significam perturbações em determinado órgão. A deficiência caracteriza-se por perdas ou alterações que podem ser temporárias ou permanentes e que incluem a existência ou ocorrência de uma anomalia, defeito ou perda de um membro, órgão, tecido ou outra estrutura do corpo, incluindo a função mental.

A incapacidade reflete as consequências das deficiências, em termos de desempenho e atividade funcional do indivíduo; e as incapacidades representam perturbações da própria pessoa. O deficiente, em qualquer lugar que esteja, é percebido imediatamente, pois incomoda e mobiliza as pessoas; com isso, pode provocar uma ameaça por ser diferente; desorganiza porque foge ao esperado, ao simétrico, ao belo, ao eficiente, ao perfeito. E estas emoções provocadas nas pessoas, de forma consciente ou inconsciente, confessadas ou não, aparecem intensamente nas relações estabelecidas entre as pessoas não deficientes e as portadoras de deficiência. Medo, cólera, repulsa, desgosto, juntas ou isoladamente, fortes ou moderadas, são possibilidades reais e frequentes (Amaral, 1995).

Observa-se que o pai do garoto apresenta desgosto por ter um filho “imperfeito” e, por isso, quer abandoná-lo. Este sofrimento do pai vai mobilizá-lo psiquicamente e, consequentemente, vai acionar seus mecanismos de defesa, já que não aceita, de modo natural, a realidade do filho, de sua deficiência visual.

O conceito de “mecanismos de defesa” foi criado por Anna Freud, em 1946, logo após seu pai Sigmund Freud ter sistematizado suas idéias a respeito da ansiedade, em 1926. Os mecanismos de defesa são estratégias do ego para manutenção do equilíbrio psíquico, através da eliminação de uma fonte de insegurança, perigo, tensão ou ansiedade. Estes mecanismos de defesa estão presentes no ajustamento e desenvolvimento da personalidade e não apenas em processos patológicos, que, nestes casos, ocorre com uma presença rígida e constante de determinados mecanismos.

A conduta defensiva provoca no indivíduo uma restrição do eu ou até mesmo uma limitação funcional da personalidade, como a que ocorre com o pai do garoto. A sua limitação na dinâmica interpessoal interfere na sua relação com o filho e, também, com a própria mãe e avó de Mohamed.

Diante de uma dificuldade, o indivíduo pode sentir medo e acionar seus mecanismos de defesa, para defender-se. Ao reagir diante do medo, ele pode partir para o enfrentamento do “inimigo”, atacando-o e destruindo-o.

No processo terapêutico, os psicólogos chamam de “terapia de enfrentamento”, sendo a forma mais saudável para resolver o conflito. Várias são as formas de fugir ao problema da deficiência. Dentre elas, a rejeição, o abandono, a superproteção, a negação etc.

O pai de Mohamed lida com seus mecanismos de defesa, por meio da rejeição, que é o abandono de forma implícita, indireta, não havendo investimento de amor, de dedicação, de tempo para cuidar do filho. A rejeição é provocada pela imperfeição da criança que pode impossibilitar suas investidas pela noiva e, consequentemente, na família que irá recebê-lo entre os seus.

O pai do garoto, além de negar-lhe o amor, infere na criança uma série de imperfeições a partir da imperfeição original, que é a sua cegueira. Esta generalização indevida provoca situações difíceis a Mohamed, porque impede a criança de viver dentro da normalidade, no seu cotidiano, respeitando suas limitações físicas.

 

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Pai de Mohamed

Mohamed demonstra um grande potencial para ser uma criança com possibilidades para estudar na mesma escola, com as outras crianças ditas “normais”, como era seu objetivo.

Com o intuito de estabelecer um paralelo com o mito de Hércules, filho de Zeus e Alcmena, resgata-se aqui seu oitavo trabalho, quando ele enfrenta os cavalos de Diomédes, animais monstruosos, pertencentes ao cruel soberano, que odeia estrangeiros. Os animais alimentam-se da carne dos forasteiros que o mar leva para as costas da Trácia. E a tarefa de Hércules é de impedir essa prática perversa e levar os animais a Micenas. (Stephanides, 2000)

O herói, de um salto, lança-se sobre o rei Diomédes e o estrangula. Atira seu cadáver para os cavalos que irão devorá-lo num segundo. Com isso, os animais tornam-se surpreendentemente dóceis.

Nos tempos antigos, os relatos metafísicos eram utilizados para o entendimento dos mistérios em envolvem a vida humana nas questões existenciais: nascimento, vida, morte, ressurreição e a criação do mundo. E os mitos são formas imaginárias e possuem características humanas, que os homens usavam para explicar estes fenômenos e, também, para atenuar seus próprios temores.

Os trabalhos de Hércules e a deficiência têm em comum o combate ao desconhecido e, por meio da reflexão e do esclarecimento de conceitos em relação ao deficiente, cria-se uma possibilidade de transformar aquilo que ameaça, naquilo que é tranquilamente inofensivo.

Segundo Lígia A. Amaral, neste trabalho de Hércules, dois aspectos podem servir de contraponto: a intolerância/perversidade e a banalização.

 

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Hércules

 

Nesta lenda, os cavalos simbolizam a intolerância e a consequente perversidade frente aos diferentes, aos estranhos, aos estrangeiros, pessoas que as tempestades (como destino ou forças da natureza) levavam às costas da Trácia. O cruel soberano de onde emana a xenofobia é, ele mesmo, devorado por suas próprias criaturas, que então, e só então, acalmam-se. Para a banalização, a autora cita Paul Diel: “....símbolo da impetuosidade, os cavalos comedores de homens representam a perversidade que devora o homem, a banalização, causa da morte da alma”.

Antigamente, os deficientes eram executados (a exemplo de Esparta, na Grécia Antiga). Porém, com o passar do tempo foram substituídos por assistencialismos, educação, reabilitação e a integração social, mas não necessariamente de forma linear. Para Amaral, cada sociedade elege um rol de atributos e/ou condições que configuram o “bom”, o “certo”, o “normal”, o “adequado”, enfim, aquilo que a comunidade identifica como um generoso espelho de si mesma, que é ideologicamente perpetuado pelo grupo dominante. Aquilo que, em última instância, constituirá o substrato da qualidade das relações estabelecidas, ou a estabelecer, entre os depositários dessa idealização e os dela desviantes. Na relação adulto-criança cabe ao primeiro a responsabilidade pela ótica da mensagem a ser transmitida à criança, uma vez que em suas mãos repousa o poder decisório último. Então, compete ao adulto começar a alterar o rumo da história, no que concerne à construção social da diferença/deficiência. Alterar o rumo de uma história contaminada por produtos culturais, que secularmente nos remetem a uma visão estereotipada das diferenças, baseados na cultura de massa, contra o que devemos lutar.

Aqui foram apresentados alguns pontos para uma necessária mudança de mentalidade e também de uma mudança social, que poderá levar os integrantes de grupos minoritários e/ou marginalizados ao exercício da cidadania, uma vez que um dos grandes obstáculos a isso estão relacionados ao preconceito, estereótipos e estigma, conclui a autora.

A relação pai/filho inclui, além destes fatores apontados aqui, no âmbito da educação, a atribuição paterna de direcionar a criança para a vida, estimulando o desenvolvimento de suas faculdades psíquicas, morais e intelectuais. E a educação implica favorecer a construção de uma ética de relações e da responsabilidade de interditar o que represente perigo psíquico ou físico ao filho. Mas, ultimamente, os pais no afã de serem amigos dos filhos, foram destituídos do lugar de quem sabe sobre a educação destes. E sem a detenção e o reconhecimento deste lugar de autoridade, não é possível educar. Pois, amigos à parte, a importância de ser pai está acima do desejo de ser amigo dos filhos. (Revista Viver Psicologia, maio, 2003)

Apesar das rejeições sofridas, Mohamed viveu momentos de intensa felicidade, pois possuía outras habilidades bastante desenvolvidas que compensavam e, muitas vezes, superavam suas dificuldades. Sua afetividade encontrava-se preservada, sua acuidade auditiva aumentada e o toque sutil de suas mãos auxiliavam-no na sua “leitura de mundo”. Seu orientador na carpintaria, a quem seu pai o entregara para formação profissional disse-lhe: “o toque delicado o fará ver com o coração”. Mas isso o menino já o fazia, pois a leitura do mundo não é só feita com os olhos, pois existe muita gente que olha mas não vê.

Ver é mais do que olhar. É perceber, sentir, interpretar, contextualizar e estabelecer relações com outras coisas vistas e sentidas. Também é necessário que os outros sentidos, além da visão, estejam alertas para que uma leitura significativa do mundo aconteça. Além disso, cada ser enxerga o mundo de maneira diferente, impregnado por sua história, seus desejos e seus interesses. As condições fisiológicas em que se encontram seus órgãos dos sentidos, seu sistema nervoso e seu cérebro serão também importantes fatores que influenciarão no “que” e no “como” vêem o mundo.

 

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UM VELHO E SEU NETO - GHIRLANDAIO

[Domenico di Tommaso Gigordi]

Florença, Itália, 1449-1494. Col. Museu do Louvre.

Nesta obra de Ghirlandaio, por exemplo, como você acha que o menino enxerga o avô? Será que lhe parece feio? E você como o enxerga? Com certeza cada pessoa o verá de forma diferente.

O que faltou a Mohamed foi alguém que respeitasse sua forma de “ver” o mundo. Que não lhe oferecesse somente piedade, mas que lutasse por justiça. Alguém que acreditasse num mundo melhor. Um mundo sem preconceitos, sem bolsões de miséria, sem exclusões baseadas na raça, gênero, cor da pele, deficiência física ou intelectual. Um mundo onde todos possam ser úteis a sua maneira, uma vez que, para compensarmos nossas deficiências, desenvolvemos de maneira aguçada outras habilidades, que podem enriquecer nossas relações e as pessoas com a quais convivemos.

Nesse sentido, devemos acreditar que é impossível construir, saberes, experiências e vivências “para” ou “pelo” outro, mas sim “com” o outro. O educador pode ser um excelente mediador entre os educandos e o mundo. Pode oferecer condições para que este se integre na escola e nos grupos dos considerados normais, como era o sonho de Mohamed. Precisa acreditar nas potencialidades que todos possuímos, procurando desenvolvê-las ao máximo, através das múltiplas linguagens e ao mesmo tempo aceitar humildemente nossa condição de humanos, portanto, falha e incompleta, que precisa do outro para poder crescer e muitas vezes para sobreviver.

Para terminar deixamos a frase de Hermann Hesse (1919), que com certeza poderá provocar novas reflexões sobre inclusão: “Nada posso lhe dar que já não exista em você mesmo. Nada posso lhe dar a não ser a chave e um impulso. Eu o ajudarei tornar visível o seu próprio mundo”.

Texto das autoras:

Ana Cândida P. Magalhães

Rosângela D. Canassa

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

1) AMARAL, L. A. Conhecendo a deficiência (em companhia de Hércules). São Paulo: Robe, 1995.

2) MAIA, A C B. Sexualidade e Deficiências, São Paulo: Ed. UNESP, 2006.

3) REVISTA Viver Mente & Cérebro, maio, julho e setembro de 2003.

4) STEPHANIDES, M. Hércules. São Paulo: Odysseus, 2000.

SITES CONSULTADOS

http://www.pensador.inof/frase/MzE1Njc acesso em 02.07.07. http://images.google.com.br/images?hl=pt-BR acesso em 02.07.02.

http://criticos.com.br/criticas_interna20.asp acesso 05.07.2007.

Comentários

Unknown disse…
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