ANÁLISE FÍLMICA: O BEIJO DA MULHER ARANHA

O filme O beijo da Mulher Aranha consta uma citação no catálogo da exposição realizada no Rio de Janeiro em fevereiro de 2017 "A direção de Arte no Cinema Brasileiro" (leia a análise completa do filme neste blog)


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O filme O beijo da Mulher Aranha (1985), com a direção do argentino e naturalizado brasileiro Hector Babenco foi inspirado no romance do escritor Manuel Puig e é considerado um clássico do cinema nacional. O filme foi rodado em São Paulo e conta a história de dois prisioneiros. O personagem Valentín (Raul Julia) é um preso político e endurecido pelas lutas que tentou travar no seu caminho. Ele persegue o sonho de um futuro por meio das ideias.
Para Valentín o mundo só tem sentido se for partilhado em prol de um ideário político, numa visão radical. (Santos, 2009, p. 122)
Na cadeira ele passa os dias pensando nos seus amigos de luta e na mulher que deixou por causa de seus ideais revolucionários. As questões sociais se dão no âmbito de sua mente e é o que importa ao prisioneiro. Ele nega o mundo das sensações, da fantasia e da imaginação. Segundo o personagem o ócio foi criado pela burguesia com a finalidade de levar o indivíduo à alienação.

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Molina (William Hurt)


O outro personagem é Molina um homossexual e escapista, porque ele sonha e inventa cenas de filmes como uma fuga de sua própria realidade. O mundo real e o imaginário se misturam revelando as suas subjetividades, as suas impressões, os seus valores, conceitos, preconceitos, através das estórias que conta ao amigo de cela.
Molina guarda um segredo, a condição é que ele poderá ser libertado se obtiver do amigo de cela as informações que levem a polícia a localizar o grupo revolucionário do qual Valentín faz parte. Ele faz um acordo com o diretor da prisão em troca de proteção e comida.

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Molina e Valentín


O mote de contato entre os prisioneiros eram as estórias contadas por Molina, que fazia o papel do narrador, enquanto Valentín ocupava o lugar do espectador.
Molina se identificava com as personagens femininas dos próprios filmes que inventava, mas sempre se inspirado nas atrizes do cinema noir, dos anos 40.

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Ava Gardner


Através destas personagens ele se fortificava contra a opressão do ambiente de carceragem. Ele era um personagem de grande sensibilidade que sonhava com a realização de encontrar um grande amor. Molina projetava-se por uma questão de identificação com as divas cinematográficas e nelas ele se apoiava e fazia delas seu suporte afetivo. (Santos, 2009, p. 114/115)




O figurino no filme

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Molina interpretando uma de suas personagens



O figurino no cinema é um sistema simbólico ligado à expressão da identidade, de gênero, da sexualidade e da comunicação visual e social do personagem, no contexto da narrativa cinematográfica.
O vestuário de Molina será um disfarce e tudo se alimenta na projeção-identificação do personagem com a atriz de cinema e de acordo com a estória que conta.


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Molina e sua echarpe rosa


As nossas necessidades, aspirações, desejos, obsessões, receios, projetam-se, não só no vácuo em sonhos e imaginação, mas também sobre todas as coisas e todos os seres. (Xavier, 1983, p. 145)


A projeção e a identificação do espectador de cinema

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Leni e Werner


A participação imaginária do espectador junto ao filme provém das suas próprias projeções e identificações, aliadas à percepção fílmica, como Molina ao se identificar com a personagem Leni (Sonia Braga).
Ela era uma cantora de cabaré, que mantinha um romance com um oficial nazista durante a ocupação na França. A relação de Leni com Werner a torna a sua espiã. Mas ela não cumpre a missão e acaba morrendo pelos nazistas.

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Sonia Braga


A atriz Sonia Braga interpreta as personagens Leni, Marta e a Mulher Aranha neste filme.
A magia dos filmes estrutura o universo do cinema e da afetividade, que por sua vez, a estética transmuta magia em afetividade e afetividade em magia. (...) O cinema abriu todas as necessidades subjetivas. Por isso é, segundo Anzieu, a técnica ideal da satisfação afetiva e o é, efetivamente a todos os níveis de civilização e em todas as sociedades. (Xavier, 1983, p. 170/171)

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Sonia Braga no filme


Nas estórias do narrador-personagem estão embutidas as narrativas do filme, que tem o propósito de abrir caminhos que levam a plateia a entender os personagens e seus conflitos. O discurso de Molina com suas estórias faz o espectador compreender o seu mundo real e ficcional e que às vezes se confundem e se misturam.
O espectador assiste ao drama no processo das projeções e identificações que ocorrem sem que o espectador se dê conta de que foi sequestrado pelo filme.

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Mulher Aranha (Sonia Braga)


No filme, a próxima estória de Molina é sobre a Mulher Aranha que vive solitariamente numa ilha e um dia salva num náufrago, que acaba sendo seu amante.

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Valentín e a Mulher Aranha


A Mulher Aranha dá o título ao filme e segundo o Dicionário de Símbolos a aranha é um animal lunar porque a lua (por seu caráter passivo, de luz refletida, por suas fases, afirmativa e negativa (crescente e decrescente), corresponde à esfera da manifestação fenomênica relativo ao fenômeno psíquico, à imaginação. A lua tece todos os destinos aparecendo por isto em muitos mitos como uma imensa aranha. (Cirlot, 2005, p. 91)


As senhoras do destino na mitologia

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As Moiras ou Parcas


Na mitologia grega quem cumpria este papel eram as Moiras para os gregos e para os romanos eles a chamam de as Parcas. As mudanças repentinas que ocorrem na vida é denominado de acaso, mas para os gregos era obra das fiandeiras ou da fatalidade, aquela que corta o fio da vida. A palavra Moira significa parte, aquilo que cabe a cada um.
Nas artes plásticas as Moiras são representadas como lindas donzelas que são responsáveis pela tessitura do destino.

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Molina armando a teia
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Molina e Valentín


Valentín começa a sofrer na prisão com as torturas e a comida envenenada. Ele mostrava-se cada vez mais frágil e necessitando dos cuidados de Molina, que por sua vez, por meio de seus truques e cuidados ele vai tecendo uma armadinha, como uma aranha tecendo a sua teia para obter a sua presa.
Molina envolvia-o com mimos, chás que ele preparava e boa comida. A justificativa era que a sua mãe trazia as refeições.
À medida que o tempo passava Valentín revelava os seus segredos como a sua paixão por Marta. Ele a deixou para dar prioridade a sua causa, a luta revolucionária. Enquanto Molina se apaixonava cada vez mais pelo amigo de cela.

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Molina



Molina caiu na teia da aranha de suas próprias emoções ao se apaixonar por Valentín e ao sair da cadeia, através de um acordo com o diretor da prisão, ele promete ao parceiro passar todas as informações necessárias ao grupo de grupo revolucionário. Desta forma, ele trai o diretor da prisão ao não cumprir a sua missão como a sua personagem Leni, que foi morta pelos próprios nazistas.
Molina também nunca contou ao parceiro sobre o seu acordo com o diretor da prisão. E ao sair da cadeia ele dá uma falsa impressão de independência e liberdade, porque mentalmente ele continua a sua relação com Valentín.
Ele poderia ter dito não ao parceiro para não ser cúmplice de seu crime. A hipótese é que ele fez por considerar esta oportunidade para viver um grande amor até o fim mesmo correndo o risco de ser morto, só para tornar-se uma grande heroína como as suas personagens criadas pela sua imaginação.

O melodrama na obra de Manuel Puig

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O escritor argentino Juan Manuel Puig Delledonne (1932/1990) no final dos anos 60 apresentou os seus romances em uma linguagem focada no melodrama. O autor escreveu o livro em 1973 em Buenos Aires, mas o romance foi censurado pelo governo e ele também começou a receber ameaças telefônicas de um grupo policial. Na sequencia ele decidiu se mudar para o México e em 1976 publica o livro. Em 1985 ele se muda novamente e vai para o Rio de Janeiro e realiza a adaptação para o cinema, com a direção Hector Babenco. A obra ganhará notoriedade mundial.
A literatura oferece muitos recursos formais que vêm das fábulas que alimentam o universo cinematográfico, como O Beijo da Mulher Aranha, que também foi adaptado para o teatro musical, pelo próprio Manuel Puig.
As imagens do espaço literário no cinema advêm do imaginário. Tudo é fala, mas na aparência é o imaginário, o incessante e o interminável. (Santos, 2009, p. 23)
O melodrama insere na literatura e explora a dramaticidade e as emoções a partir de uma inscrição no real, na forma do drama, das crises morais, etc.
Na perspectiva contemporânea o melodrama concorre com o teatro e a performance como emblemas de uma espetacularização de discurso. (Bragança, 2007, p. 15)

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Sonia Braga


A narrativa clássica do cinema de Hollywood leva em seu bojo o melodrama, que ao nascer junto ao cinema exigiu a criação de novas técnicas para enfatizar a emoção da atriz na tela e junto ao público.
As técnicas como o primeiro plano e os closes das atrizes ganhavam a empatia do público. O rosto da estrela sempre será uma construtora de imagens que permanecem guardadas eternamente na memória do espectador de cinema.
Hollywood dominou o entretenimento popular principalmente, no período da década de 20 até meados dos anos 50 e com isso influenciou muito a imaginação do público.

No decorrer do tempo, surgiram novos paradigmas da indústria cultural que transportou a narrativa dos romances para o cinema para a TV. O romance e os outros gêneros literários na atualidade se tornaram híbridos, na medida em que existe o diálogo do romance com outras artes, como no teatro, no cinema e na televisão. Mas as histórias são contadas de formas diferentes e cada autor tem seu próprio estilo.
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Babenco – Revista Isto É


A transposição da obra literária O Beijo da Mulher Aranha para o cinema de Babenco, o processo de adaptação partiu do nível textual e depois para o roteiro cinematográfico, que problematiza questões referentes à política na voz do personagem Valentín e em contraposição a tensão causada pelo tema da ditadura na Argentina e suas consequências, Molina que é o típico personagem do melodrama suaviza a trama com suas narrativas criadas pela própria imaginação do personagem.

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Valentín e Marta


Ele vive na situação prisional em companhia de suas atrizes que preenchem a sua existência, criando um parêntese entre a realidade e a ficção.
Puig se mascara de personagem (autor implícito e ficcional) porque se apresenta no discurso do personagem central que é Molina. O autor está presente na obra, mas ao mesmo tempo está fora. (Santos, 2009, p. 24/25)
Segundo José Jacinto dos Santos Filho tanto o autor do texto literária quanto do texto cinematográfico estão expondo o que potencialmente há em si construído a partir de sua experiência, no entanto, estes mesmos gozam da liberdade de escrever onde dar movimento à imagens (...)
O roteirista e o diretor tem a liberdade artística de escolher o tipo de adaptação que prefere realizar junto à obra original, que pode ser apenas uma adaptação parcial, uma recriação ou propriamente a adaptação fiel da obra.
Mas o filme sempre se tornará outra obra artística independente da original. A obra deverá ser julgada dentro do próprio estilo, sem fazer cobranças. Nenhuma obra literária repete um filme, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um dos seus resultados e o que importa será como o filme se constrói e não o final.
A adaptação é o transporte de um gênero para o outro e narrar é contar uma história a partir de uma referência externa, como este filme que propicia ao espectador “sentado na segundo cela” de assistir o que os autores constroem para a narrativa.
Do ponto de vista do narrador o subjetivismo substitui a objetividade. (...) O narrador ergue uma cortina e o leitor/espectador deve participar do que acontece como se estivesse presente de carne e osso. A subjetividade do narrador se afirma na força que produz essa ilusão. (Adorno, 2012, p. 60)
Na medida em que os espectadores do cinematógrafo de Lumière acreditaram na realidade do trem avançando para eles, na sessão de cinema realizada em Paris, em 1895, quando viram “cenas de um realismo espantoso” é que se sentiram, ao mesmo tempo, atores e espectadores. Desde a sessão de 28 de dezembro de 1895, ocorreu o fenômeno da projeção-identificação. O fenômeno é um processo universal e multiforme.
O filme mais do que qualquer outro meio de comunicação, tem hoje uma função catalisadora e promove diálogos, ainda que imaginários. E o fenômeno de identificação com o ator/personagem não mudou o que alterou foram as formas de se fazer cinema.
No filme de Babenco a questão da liberdade é pertinente e a discussão sobre a perda da liberdade é um ponto fundamental.
Mas para o protagonista a liberdade adquirida não o impediu, em linhas gerais, de colocar um parêntese junto à realidade e continuar sonhando, numa situação de devaneio, como se estivesse assistindo o filme de sua própria vida. Molina vive sob a inspiração do cinema como um modelo não apenas como fuga, mas como a forma que ele encontrou de ser no espaço prisional ao construir as suas narrativas que o libertava do cárcere.
Na teia dos acontecimentos criados pelo próprio personagem ele escolhe como diria o filósofo Jean Paul Sarte, até a bala que o mata e que acaba definitivamente com os seus sonhos. (Cabrera, 2006, p. 363)
Desta forma, também somos Molina que vive e sonha dentro do nosso tempo de vida, antes que as senhoras do destino interfiram no nosso caminho.



Referência bibliográfica:
1) ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012, 2ª. Edição.
2) BRAGANÇA, Maurício. Trópicos de Lágrimas: um estudo sobre o melodrama e América Latina a partir do cinema de cabareteira mexicano e da literatura de Manuel Puig. Tese de Doutorado defendida em 2007, na Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro.
3) CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
4) CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Centauro, 2005.
5) SANTOS FILHO, José Jacinto. O beijo da mulher aranha e o espaço na narrativa literária e fílmica. Ed. Universitária UFPE/Recife: 2009.
6) Xavier, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983.

Sites consultados:
www.google.com.br
www.cineclick.com.br
www.periodios.letras.ufmg.br
DVD:
O Beijo da Mulher Aranha, 1985, direção de Hector Babenco.



Ficha técnica do filme:
Título original: Kiss of the spider woman
Título no Brasil: O beijo da mulher aranha
Direção: Hector Babenco
Roteiro: Leonard Schrader
Elenco: William Hurt, Raul Julia e Sônia Braga
Ano: 1985

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