O AUTO DA COMPADECIDA: 

O ESPAÇO SIMBÓLICO E O IMAGINÁRIO

NORDESTINO NA OBRA DE ARIANO

SUASSUNA

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O Auto da Compadecida é uma adaptação de Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão da obra do escritor Ariano Suassuna para a televisão. A comédia mistura regionalismos e religiosidade para contar a história de dois nordestinos: João Grilo (Matheus Nachtergaele), um sertanejo desnutrido e malandro que faz da esperteza seu modo de ganhar a vida e seu companheiro de estrada Chicó (Selton Mello), um mentiroso compulsivo e covarde, metido a valente e conquistador.

A história se passa no início da década de 1930, quando a dupla chega a Taperoá, no sertão paraibano, anunciando pelas ruas da pequena cidade a exibição do filme A Paixão de Cristo, para ganhar alguns trocados. A dupla fica sabendo que o padeiro Eurico (Diogo Vilela) precisa de ajudantes e Chicó e João Grilo passam a trabalhar e morar na padaria. Chicó se torna um dos muitos amantes de Dora (Denise Fraga), a fogosa mulher do padeiro, enquanto João Grilo aproveita o emprego para comer de graça.

 

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                                     Chicó e João Grilo

No primeiro episódio, O Testamento da Cachorra, a cadela de dona Dora morre ao comer a ração dos dois nordestinos, na qual Eurico havia colocado veneno para ratos. Para conseguir que o animal tenha um enterro cristão e assim evitar a ira dos patrões, João Grilo convence o padre João (Rogério Cardoso) de que ele pode levar parte de uma suposta herança deixada no testamento da cachorra. O padre, então, subverte por dinheiro as regras da Igreja, o que atrai a atenção do bispo (Lima Duarte) que está de visita à cidade e também quer sua parte na herança. O padeiro simboliza o sovina e Dora, a luxúria, a esposa infiel que adora homens raivosos, com cara de mau.

 

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                                 Dora e sua cachorra

No segundo episódio, O gato que Descome Dinheiro, o poder e a austeridade da cidade aparecem na figura do major Antônio Morais (Paulo Goulart), um tradicional latifundiário.

 

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                        Chicó e o major (Paulo Goulart)

O major recebe em casa sua filha Rosinha (Virginia Cavendish) que vêm de Recife. O major oferece a mão da moça a um pretendente valente e com bom dote. Rosinha, porém, se apaixona por Chicó que, além de covarde, não tem dinheiro e nem posses para se casar. João Grilo, mais uma vez, tem uma ideia para ajudar o amigo e, quem sabe, pôr as mãos no dinheiro do pai da moça.

 

 

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                          Rosinha (Virginia Cavendish)

Rosinha é emancipada e com uma mente perspicaz se torna amiga de João Grilo que comenta: “é companheira na inteligência”. No episódio do dote de casamento, Rosinha ao se casar com Chicó ganha de presente da bisavó já falecida, uma porca cheia de moedas, como presente de casamento.  O episódio foi baseado na obra O Santo e a Porca do próprio Suassuna e que se inspirou em Molière.

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A obra O Santo e a Porca

O personagem Chicó é um contador de histórias, que ele inventa, com a sua mente rápida e no final ele justifica junto com uma baforada de cigarro de palha: “só sei que foi assim...” Ao contar as suas estórias e peripécias, o personagem revela as imagens de seu inconsciente e que representam também o imaginário coletivo de seu povo, constituído por desenhos que contém elementos da estória contada e expressam seus próprios devaneios como se fosse um sonho.

 

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                              Chicó (Selton Mello)

Entre o falso (os pequenos contos) e o verdadeiro (a fome e a seca), Chicó sonha acordado, para abrandar o seu sofrimento. Na improvisação, ele evoca os repentistas nordestinos, com a sua criatividade e melodia. O personagem também impressiona o espectador com a sua ingenuidade semelhante ao “O Vagabundo”, cujo personagem de Charles Chaplin lutava para sobreviver através do riso e de suas estórias, na tela em preto e branco do cinema mudo.

 

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                Personagem “Vagabundo” de Chaplin

O personagem João Grilo (Matheus Nachtergaele) é o melhor amigo de Chicó e é o mais esperto da dupla, porque ele fabrica as ideias para as epopeias. “O amarelo” como é chamado tenta se integrar ao grupo social da cidade, mas é rejeitado. A sua maior qualidade é a esperteza, porque é a sua defesa contra a fome, a seca e a exclusão social. O figurino do personagem era uma prótese dentária de aspecto amarelado, irregular e também o escurecimento da pele para interpretar João Grilo.

 

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                      João Grilo (Matheus Nachtergaele)

Na cidade de Taperoá eles vivem com a diversidade e a miséria. João Grilo é o herói de dois romances intitulados As Proezas de João Grilo, de autoria de Suassuna.

O personagem Vicentão é da peça Torturas de um Coração, de Suassuna que foi incorporado na minissérie “O Auto da Compadecia”.

 

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                              Vicentão (Bruno Garcia)

As figuras do diabo, de Jesus e de Maria, o tribunal divino, estes personagens tiveram como objetivo de dar uma interpretação ao Evangelho uma ideia mais humana e concreta. As figuras bíblicas simbolizam “O Tribunal Divino”, sendo Cristo o juiz, o diabo que tenta levar todos para o inferno e a Nossa Senhora na defesa de “seus filhos” que devem seguir para o céu. No “Auto” a igreja católica é revelada de forma corrupta e decadente e os seus representantes foram fielmente mantidos no filme.

 

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      O Tribunal Divino

O cangaceiro Severino (Marco Nanini) é um matador, espoliador e que comete violências e brutalidades injustificáveis, para encobrir a sua ganância pelo poder entre o seu bando e pelo dinheiro quando saqueia Taperoá. O cangaceiro é um personagem mítico do sertão brasileiro. A caracterização deste personagem inclui um olho de vidro falso, látex no rosto, peruca e indumentária que chegava a pesar oito quilos.

 

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                      Cangaceiro Severino ( Marco Nanini)

A adaptação da peça O Auto da Compadecida para a TV e o cinema foi realizada pelo diretor pernambucano Guel Arraes e se sustenta como uma obra fílmica, apesar de que o texto original ser um texto para o teatro e inspirado nas obras de Decameron e de Boccacio. Os diálogos são rápidos e os cortes, entre uma cena e outra são bem realizados na medida em que dá o efeito cômico da obra. A minissérie foi rodada na cidade de Cabaceiras, no interior da Paraíba, onde já foram rodados vários filmes brasileiros e a região ficou chamada de “roliúde brasileira” pelos produtores.

 

CAPA

 

 

Ariano Suassuna em 1955 escreveu a peça O Auto da Compadecida que o tornou conhecido em todo o mundo. “O auto” apresenta o perfil do sertanejo e as peculiaridades locais, com seus personagens e que retratam também o Brasil com toda a sua diversidade. A minissérie global foi exibida em 04 capítulos, no período de 05/01 a 08/01/1999 na Rede Globo.

Suassuna diz que sua obra se baseia nos romances e histórias populares do Nordeste e em “O Auto” é um parentesco com gêneros mais antigos, de outras épocas e regiões que, todavia, devem ter sido de algum modo à origem remota daqueles que a inspiraram como as tradições das peças da Alta Idade Média, como Os Milagres de Nossa Senhora, em que, numa história mais ou menos – e às vezes muito – profana, o herói em dificuldades apela para Nossa Senhora, que comparece e o salva, tanto no plano espiritual como temporal.

 

Cartaz

Cartaz da peça

 

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O jovem Ariano Vilar Suassuna

Ariano Vilar Suassuna nasceu em 1927, na cidade de Nossa Senhora das Neves, atual João Pessoa, Capital do Estado da Paraíba e é o oitavo de uma família de nove filhos. O seu pai João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna governava o Estado, no período de 1924 a 1928, quando foi assassinado no Rio de Janeiro, em consequência de uma luta política que se desencadeou na Paraíba, às vésperas da Revolução de 1930.

A quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929 gerou uma forte crise na economia brasileira e como consequência gerou o desemprego que contribuiu para o clima de insatisfação popular com o governo de Washington Luiz (1869-1957).

A situação preocupou os setores militares de alto comando prevendo uma possibilidade de desencadear uma guerra civil no País. O presidente não pretendia renunciar ao poder. Depois, os chefes militares do Exército e da Marinha depuseram o presidente e instalaram uma junta militar que, em seguida, transferiu o poder para Getúlio Vargas, que exterminou a República Velha no Brasil. O Golpe de 1930 e o final do domínio das oligarquias no poder fez com que o novo presidente governasse o Brasil de forma provisória entre 1930 e 1934. Em 1934, ele foi eleito pela Assembleia Constituinte como presidente constitucional do Brasil, com mandato até 1937.

Mas, logo ocorreu outro golpe com apoio de setores militares e o presidente permaneceu no poder até 1945, período conhecido como Estado Novo de Getúlio Vargas.

O Brasil estava em crise política e a Dona Rita Villar Suassuna, mãe do jovem Suassuna decidiu mudar-se para a fazenda de propriedade da família, no sertão seco de Taperoá, na região do Cariri, no Estado da Paraíba.

A infância passada no sertão deixou marcas no escritor, bem como, a perda do pai, que influenciou toda a sua obra.

 

Iluminugravuras

 

O escritor trabalha com a intertextualidade ao cruzar as linguagens artísticas: literatura, música, dança, artes plásticas, iluminugravuras, teatro, poesia, cinema, entre outras expressões artísticas, tornando sua obra plural.

Nas iluminugravuras de Suassuna ele une o universo sertanejo e o mundo mítico cristão para configurar a sua obra literária, gráfica e plástica. Ele é o mestre na arte erudita e popular e retrata em suas obras os temas do nascimento, do sofrimento humano, da alegria e da morte. Ele disse em uma entrevista: “basta o problema da morte para tornar trágico o fundamento da vida. Ao mesmo tempo, acho a vida uma aventura fascinante. Gosto e acho belo o espetáculo da vida”.

Segundo o livro “Ariano Suassuna, o Cabreiro Tresmalhado”, de Maria Aparecida Lopes Nogueira, publicado em 2002, sob o ponto de vista antropológico, a autora destaca três dimensões ou arquétipos: o Rei, o Palhaço e o Profeta: “São dimensões que atuam de forma dinâmica, ora predominando uma, ora outra”, explica a autora. Para ela, o Rei dá visibilidade às opções políticas e éticas da obra e da vida do escritor paraibano, sendo também uma evocação mágica do pai assassinado quando o autor era menino. Ariano teria o delírio de ver a possibilidade da volta do pai, sob a forma de Dom Sebastião, o encantado que um dia vai regressar.

 

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Ariano Suassuna

Para Suassuna: “na tarefa de viver, a fé ajuda muito. O espetáculo do sofrimento humano é imenso. Como conciliar a bondade e a misericórdia de Deus? Esse é o problema filosófico e religioso fundamental”. (Jornal Folha de S.Paulo/nov/2013)

 

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Os contos de Chicó

O espaço nordestino não é apenas territorial, geográfico, vai mais além, o espaço simbólico do nordeste abrange os aspectos sociais e culturais de um povo. E só é possível o espectador reconhecer este espaço por meio do cinema e da literatura, com as figuras típicas, a cultura que fomenta o imaginário nacional.

O estudo do rural (que abrange os sertões) sempre foi importante na cinematografia nacional por fornecer subsídios para uma discussão sobre a identidade nacional e a nossa cultura. Na obra de Suassuna captamos este espaço simbólico e o imaginário do povo nordestino.

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Contos de Chicó

O poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) foi amigo de Suassuna e sintetiza a obra do escritor numa única expressão: “fantástico espaço suassuna”. A cidade de Taperoá é um marco perene segundo Ariano: “mesmo que você tenha vivido muito mais tempo no Recife do que no interior da Paraíba”.

Rosângela D. Canassa – agosto/2014

FICHA TÉCNICA

Autoria: Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão

Direção-geral: Guel Arraes

Direção de núcleo: Guel Arraes

Período de exibição: 05/01/1999 - 08/01/1999

Horário: 22h30

Nº de capítulos: 4

Elenco:

Aramis Trindade - Cabo Setenta

Bruno Garcia - Vicentão

Denise Fraga - Dora

Diogo Vilela - Padeiro Eurico

Enrique Diaz - Capanga

Fernanda Montenegro - Nossa Senhora, a Compadecida

Lima Duarte - Bispo

Luis Melo - Diabo

Marco Nanini - Cangaceiro Severino

Matheus Nachtergaele - João Grilo

Maurício Gonçalves - Jesus

Paulo Goulart - Major Antonio Morais

Rogério Cardoso - Padre João

Selton Mello - Chicó

Virginia Cavendish - Rosinha

Referência bibliográfica

1- NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. Ariano Suassuna – O cabreiro Tresmalhado. São Paulo: Ed. Palas Athena, 2002.

2- SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Livraria Agir, 2005.

3 -______________. Os homens de barro. Rio de Janeiro: José Olympio,

2011.

4- Jornal Folha de São Paulo – nov/2013

DVD – O Auto da Compadecida – minissérie da TV Globo.

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