Cinema e Psicanálise: o desencanto do mundo e a ansiedade no filme de Michelangelo Antonioni O Deserto Vermelho
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Monica Vitti em O Deserto Vermelho |
O cinema americano influenciou os cinéfilos franceses do pós-guerra e até os cineastas que surgiram depois, passando pelos críticos da Cahiers du Cinéma e por outros cineastas das diversas tendências que compunham a Nouvelle Vague (Resnais, Vardá, Rozier e outros). O período compreendido entre 1959 e 1963, os jovens cineastas tinham um culto de referência (citada ou dissimulada) aos filmes marcantes do cinema do passado como as obras de Alfred Hitchcock, Fritz Lang, Murnau, etc.
O diálogo com o cinema do passado tinha como objetivo alargar novos caminhos em relação à estética cinematográfica. Segundo o crítico Jacques Aumont, a arte máxima do cinema e do diretor, a expressão é calcada na representação dramática, cuja expressão foi herdada do teatro:
Boa parte dos filmes de autor preocupa-se também com o teatro,
seja por uma referência direta como em Noite de Estreia (John Cassavetes),
seja pelo interesse contínuo da cena (quase todos os filmes franceses, as comédias e os
dramas hollywoodescos) (...), o teatro continua presente. (Aumont, 2008, p. 20)
Nos anos de 1960, multiplicam-se as escolhas estéticas, que avalizava tanto o classicismo de Hollywood e a sua teatralidade, bem como, a modernidade de Rossellini e o Cinema Novo de Glauber no Brasil. O crítico André Bazin escreveu três artigos, que depois se fundiriam dando origem ao seu livro O Cinema: ensaios (1991), onde o mesmo aspira por um cinema que se despoja da dependência do visual (a pintura, ele diz), em que se encontrava desde o cinema mudo, bem como, a dependência com a estética teatral: “O cinema não será mais visto como um concorrente do pintor ou dramaturgo, mas sim do romancista”. (Aumont, 2008, p. 75)
O cinema da Nouvelle Vague questiona o poder ilusionista de Hollywood e passa para uma nova modernidade:
(...) a da reflexividade e da desconstrução, a que vê surgir um cinema de autor,
que reivindica o estatuto de obra de arte em oposição aos produtos descartáveis do cinema comercial.
É então que ele engendra a sua própria religião: a cinefilia. (Lipovetsky, 2009, p. 48)
Segundo o crítico, a busca é pela reflexividade, pelo subjetivo e o sensorial, onde os personagens não são definidos claramente por seus objetivos e ações conforme o primeiro cinema com sua ideologia maniqueísta.
A encenação no cinema é a mais natural possível e Aumont cita Dmytry, que defende a seguinte ideia:
(...) de que os atores em vez de ser apreciada pela sua gestualidade,
tornou-se cada vez mais “interior”, o bom ator é agora aquele que faz
menos gestos e se limita a representar com os olhos. (Aumont, 2008, p. 72)
O Cinema Moderno força o espectador a olhar a narrativa fílmica pela ótica do diretor, cujas preocupações não eram dar importância excessiva aos pormenores da realização e Godard resumiria este tipo de cinema: “a encenação como um exercício do olhar e de uma subjetividade e a montagem como instrumento emocional insuperável (...). A montagem sobrepõe à encenação” (Aumont, 2008, p. 109). O surgimento das cinematecas depois da 2ª. Guerra Mundial transforma o cinema como algo de valor artístico e histórico. Os temas que marcaram os filmes da Nouvelle Vague são o vazio da burguesia e das classes abastadas e a tomada de consciência de seus indivíduos sobre esse vazio; a alienação provocada pelos avanços tecnológicos, que afastaram o homem da natureza e de seus sentimentos provocando a falta de comunicação nos relacionamentos familiares e amorosos.
O diretor italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007) tornou visível no cinema os nossos desencantos com o mundo. O familiar e o existencial são vivências inseparáveis bem como, certa desordem sentimental vivida pelas personagens, que se configuram como um retrato crítico da época.
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Michelangelo Antonioni |
Os diálogos no filme do diretor são mínimos como no filme A Aventura (1960) e o tom no ritmo da fala das personagens é bastante lenta. As imagens privilegiam os campos abertos como em A Noite (1961) e O Eclipse (1962). O diretor filma em Londres Blow Up – Depois daquele Beijo (1966), outro filme renomado cujo tema é do fotógrafo que presencia um crime enquanto trabalha.
O Deserto Vermelho de Antonioni e os desencantos com o mundo
O filme de 1964 de Antonioni O Deserto Vermelho é o primeiro em cores depois de 08 longas em preto e branco e funciona como uma espécie de epílogo da trilogia da incomunicabilidade, que reflete o homem moderno e os vazios existenciais, que tem que enfrentar.
Segundo o crítico do jornal A Folha Carlos Starling:
Segundo o crítico do jornal A Folha Carlos Starling:
A década de 1960, alimentada por utopias que pretenderam ou de fato modificaram
a política, a sociedade, a música e as formas de amar, também foi o apogeu da ideia
de um cinema revolucionário, insubordinado, revelador do estado do homem
naquele presente. (A Folha, 2007, p. 23)
Segundo o crítico de cinema, essa concepção é indissolúvel da noção de autor, do reconhecimento do diretor como artista que tem no filme um veículo de comunicação de ideias e visões de mundo, que se completam com os temas da angústia amorosa, a neurose da vida de casal e o descompasso entre frustração e satisfação. Nesses filmes, o espectador pode dizer “aqueles filmes que não acontecem nada”, mas o movimento não é no exterior de suas personagens, porque ocorre no seu mundo interno como as paisagens que evocam a figura humana pequena, perdida, ínfima.
Logo depois destes filmes ‘da incomunicabilidade’ Antonioni radicaliza a sua forma de fazer cinema e promove personagens disfuncionais como em O Deserto Vermelho (1964), que seria o primeiro dessa série de deslocamentos e a sensação desagradável da opressão impedindo a percepção das personagens de outros aspectos da vida.
O pensador francês Roland Barthes (1915-1963), ele definiu o cinema de Antonioni como:
Logo depois destes filmes ‘da incomunicabilidade’ Antonioni radicaliza a sua forma de fazer cinema e promove personagens disfuncionais como em O Deserto Vermelho (1964), que seria o primeiro dessa série de deslocamentos e a sensação desagradável da opressão impedindo a percepção das personagens de outros aspectos da vida.
O pensador francês Roland Barthes (1915-1963), ele definiu o cinema de Antonioni como:
O Moderno não é o tema estático de uma oposição fácil, o Moderno é,
ao contrário, uma dificuldade ativa em seguir as mudanças do Tempo,
não mais apenas no nível da grande História, mas por dentro dessa pequena história
cuja medida é a existência de cada um de nós (A Folha, 2007, p. 46).
Nesse soturno deserto que é o filme, o diretor questiona o homem em meio à tecnologia e para enfatizar a angústia que é viver naquele local ouvem-se sons de máquinas e imagens com cores saturadas durante o filme, que acaba sendo insuportável assistir ao espetáculo. Dessa forma, a obra mostra a redução da dimensão humana na escala industrial, como homem diante de sua existência insípida, que gera a ansiedade. Segundo Shakespeare: “(...) sabe-se de pessoas que saltaram de barcos salva-vidas, porque não conseguiram enfrentar a agonia da dúvida, a incerteza de ser ou não salvo” (May, 2010, p. 37).
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Cena do filme O Deserto Vermelho (1964) |
A ansiedade pode assumir todas as formas e intensidades, pois é a reação básica do ser humano a um perigo que ameaça sua existência, ou um valor que ele identifica com a sua existência. O medo é uma ameaça a uma parte do self como sente uma criança que descobre estar perdida. A personagem Giuliana (Monica Vitti) está desorientada e ela acabou de sair do hospital após uma tentativa de suicídio. O marido é gerente de uma usina e não percebe o que aflige a esposa. Um colega do marido tentará se aproximar dela, mas a personagem não consegue escapar de sua própria insegurança diante da vida e da sua realidade fugaz.
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Mônica Vitti |
A musa inspiradora do diretor é a atriz italiana Monica Vitti (1931), que encarna a atordoante protagonista uma mulher fria e ao mesmo tempo sensual. A sua marca de insatisfação no filme se revela na sua frase: “Quando olho muito para o mar... então a terra não me interessa mais”. A ambiguidade da personagem faz dela com que não se destaque dos demais e o vazio e a solidão unem-se ao seu imaginário de um mundo instável e desencorajador.
O crítico Inácio Araújo observa que:
O crítico Inácio Araújo observa que:
Todo o tempo, nesse deserto, as coisas parecem em transformação, de tal modo
que não podemos captá-las. As formas parecem sempre a caminho da dissolução.
A realidade é impalpável como uma nuvem. É verdade que assim também é Giuliana (Monica Vitti).
Em um extra do DVD, Antonioni refere-se a ela como "uma neurótica". Pode ser.
Que ela não lida tranquilamente com a realidade é evidente. Mas a realidade que vê
Antonioni nunca parece ser mesmo tranquila. Monica, linda e estilhaçada como nunca
antes ou depois, lida com esse mundo onde podemos ter a sensação de ouvir um grito.
Mas, como o grito se perde, nunca saberemos se existiu. Os médicos dizem que o problema
de Giuliana é "voltar à realidade". Mas "há algo de terrível na realidade,
e eu não sei o que é" (acesso google em 28/04/2019)
A realidade de Giuliana pode ser um produto da imaginação? O que é real e o que é imaginário? Nesse filme podemos perguntar se aquilo que vemos atrás da personagem, quando ela passeia no cais, se é mesmo um navio ou quadro abstrato, conclui o jornalista.
Os personagens Corrado Zeller (Richard Harris) e Ugo (Carlo Chionetti) conversam ao lado da fábrica quando uma espessa fumaça branca começa a sair. Ela toma toda a tela. Os homens, estáticos, ficam a observá-la. Antonioni é a favor da imagem e a sua estrutura plástica e da organização do tempo é para traduzir melhor um realismo no cinema. O filme do diretor italiano se define como um deserto de emoções e a ansiedade domina a todos. O desejo de ser estimado, querido, aprovado, grande parte da ansiedade advém da ameaça de não ser aceito e ter que viver isolado, solitário e abandonado. A ansiedade deve ser admitida e a pessoa menos neurótica ficará. O diretor tornou visíveis nossos desencontros com o mundo e com nós mesmos, por meio de suas personagens com certa desordem sentimental e como um retrato crítico de sua própria época.
Os personagens Corrado Zeller (Richard Harris) e Ugo (Carlo Chionetti) conversam ao lado da fábrica quando uma espessa fumaça branca começa a sair. Ela toma toda a tela. Os homens, estáticos, ficam a observá-la. Antonioni é a favor da imagem e a sua estrutura plástica e da organização do tempo é para traduzir melhor um realismo no cinema. O filme do diretor italiano se define como um deserto de emoções e a ansiedade domina a todos. O desejo de ser estimado, querido, aprovado, grande parte da ansiedade advém da ameaça de não ser aceito e ter que viver isolado, solitário e abandonado. A ansiedade deve ser admitida e a pessoa menos neurótica ficará. O diretor tornou visíveis nossos desencontros com o mundo e com nós mesmos, por meio de suas personagens com certa desordem sentimental e como um retrato crítico de sua própria época.
Referência bibliográfica
AUMONT, Jacques. Moderno? Por que o cinema se tornou a mais singular das artes. Campinas/SP: Papipus, 2008.LIPOVETSKY, Gilles. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009.
MAY, Rollo. O homem à procura de si mesmo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
Jornal A Folha – O Deserto Vermelho, um filme de Michelangelo Antonioni. Coleção Folha Cine Europeu. São Paulo: Editora Moderna, 2007.
DVD – O Deserto vermelho – 1964.
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