Abril despedaçado e o tropo marítimo no imaginário cinematográfico de Glauber Rocha e Walter Salles

  

Rodrigo Santoro

 

Resumo

Este artigo busca compreender e examinar a gênese e as características estéticas do mar glauberiano visto como uma utopia, e que foi reapropriado pelo cinema de Walter Salles. O objetivo é um diálogo com o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. O mar, com suas significância e dualidade construídas pela interpretação humana, ao mesmo tempo benevolente e catastrófico, tem imensurável efeito no desenvolvimento e construção das culturas e sociedades, particularmente de nações marítimas, adentrando no cotidiano e nos mais diversos planos: religioso, no âmbito da mitologia, artes, interpretação de sonhos e tantos outros.

Palavras-chave: cinema brasileiro, tropo marítimo, nordeste brasileiro.


Abstract

This article seeks to understand and examine the genesis and aesthetic characteristics of the Glauberian sea seen as a utopia, which was reappropriated by Walter Salles's cinema through a dialogue with the film Black God, White Devil. The sea, with its significance and duality built by human interpretation, at the same time benevolent and catastrophic, has an immeasurable effect on the development and construction of cultures and societies, particularly maritime nations, entering daily life, more diverse plans: religious, in the scope of mythology, arts, dream interpretation and others.

 

Keywords: brazilian movie, maritime trope, Northeast of Brazil.

 

 

Introdução

 

O filme Abril despedaçado (2001), de Walter Salles, inspirado no livro homônimo de Ismail Kadaré, narra a história de duas famílias sertanejas e a disputa por terras, no ano de 1910, no município baiano de Rio de Contas. As revoltas entre pai/mãe/filhos, parricídio, matricídio, fatos que pontuam a injustiça flagrante do passado no presente e a sua continuidade, deflagrando conflitos familiares que geram crimes de honra. As famílias tentam acertar as contas na paisagem da seca, enquanto uma camisa manchada de sangue balança ao vento como uma bandeira da discórdia.

Tonho (Rodrigo Santoro), filho do meio da família Breves, é impelido pelo pai a vingar a morte do seu irmão mais velho, vítima de uma luta ancestral entre famílias e se cumprir a missão, Tonho sabe que sua vida ficará partida em duas: os 20 anos que ele já viveu e o pouco tempo que lhe restará para viver. Ele será, assim, perseguido por um membro da família rival, como dita o código de vingança da região.

Angustiado pela perspectiva da morte e instigado pelo seu irmão menor, Pacu (Ravi Ramos Lacerda), que narra a história, Tonho começa a questionar a lógica da violência e da tradição. O afastamento da realidade concreta pela alienação dos sertanejos é devido a motivos de vingança, com a consequente geração de revolta e crimes. A violência é alvo de crítica; porém, nas duas famílias que lutam entre si por causa de terras, o que manda é regra do “olho por olho, dente por dente”, a lei de talião.

A lei de talião, também dita pena de talião, consiste na rigorosa reciprocidade do crime e da pena, que é apropriadamente chamada retaliação. Na perspectiva da lei de talião, uma pessoa que feriu outra deve ser penalizada em grau semelhante, e a pessoa que infligir tal punição deve ser a parte.

Tonho, apesar de envolvido na rixa entre as duas famílias não se sente à vontade de entrar nessa briga, mesmo assim é forçado pelos pais. No Riacho das Almas, o riacho secou e ali só ficaram as almas, como narra Pacu, o menino sem nome como ele mesmo se autodenomina.  O protagonista é auxiliado por Clara (Flavia Marco Antonio), que representa o novo, quando ele tira a fita preta do seu braço, atitude que o leva a uma ideia de transformação de seu destino.

 

 

José Dumont

 

 

O retrato dos familiares mortos fixados na parede simboliza a morte que não tem fim, enquanto a bolandeira, com a sua circularidade, remete a um relógio em que o tempo se repete numa lógica circular, como os acontecimentos e os crimes. Os bois que giram sozinhos fazem Tonho se lembrar do seu tempo está próximo.  Assim, ele parte para o exílio, porque não aceita a lei do pai, e vai ao encontro do mar nas cenas finais, as quais evocam o mar glauberiano, inspirado em Truffaut.

A partir dessa reflexão, proponho examinar a gênese e as características estéticas do mar de Glauber movido por abalos de afirmação e a negação da utopia, e que como foi reapropriado pelo cinema de Walter Salles num diálogo com o filme de Glauber Deus e o Diabo na terra do sol (1963).

 

 

Cartaz do filme Deus e o Diabo

 

O filme é uma viagem no tempo, um passeio pela “Renascença Baiana” dos anos de 1960, e conta a história de um casal que se junta aos seguidores do Beato (Lídio Silva), que promete o fim do sofrimento através da religião. Os seguidores, porém, deverão passar por sacrifícios. A chegada do matador de aluguel Antônio das Mortes (Maurício do Vale) estabelece uma dimensão trágica no filme do diretor baiano em razão de suas contradições, conforme ele mesmo diz: “[...] num quero que ninguém entenda em nada de minha pessoa” (Bernardet, 2007, p. 96-98).

Segundo o autor, o personagem torna-se tão enigmático que isso se reflete na sua roupa, uma longa capa, e no chapéu de abas largas que tampa o seu rosto. Ele é solitário e não participa de grupo algum, talvez no grupo de alguns soldados, em alguns momentos do filme. O diretor compõe o personagem numa zona mitológica, que resiste à interpretação, não apenas do cantador cego, mas também à nossa.

Em Deus e o Diabo na terra do sol, a revolta é fomentada pelo misticismo violento, que promete ao sertanejo um país imaginário em que o deserto vira mar e correm rios de leite. Já no filme Abril despedaçado o sentimento de vingança gera violência, que cega e leva à destruição. Nos dois casos, trata-se de uma revolta alienada, em que os personagens não confrontam os seus problemas de frente.

Segundo Ismail  Xavier:

 

Desde Deus e o Diabo, é nítida a incidência de um velho debate sobre as formas de consciência do oprimido. Tais preocupações, no caso de Glauber, derivam, em parte, de seu diálogo com os Sertões (1902), de Euclides da Cunha. O escritor testemunhou, como jornalista, a Guerra de Canudos (1897) e o massacre dos camponeses reunidos na comunidade religiosa sediada naquela pequena cidade [...].(Xavier, 2001, p. 19).


Adaptado, o refrão da canção em estilo de cordel cantada por Sérgio Ricardo, com música deste e letra de Glauber, compõe a antítese que alimenta  o filme Deus e o Diabo e também é a leitmotiv dos diálogos tanto de Beato Sebastião quanto do cangaceiro Corisco (Othon Bastos). O cangaceiro usa da violência para a conquista de uma libertação. A vida se submete à morte e à ordem pervertida das coisas. Deus é a religião e o Diabo é a guerra. Assim, o propósito de Corisco implica  nas relações de poder no âmbito social da sua época.

O cinema de Glauber foi transformado em símbolo do Cinema Novo e também lançou importantes atores, como o baiano Othon Bastos, intérprete de Corisco, que destaca a relevância do filme de Glauber nos dias de hoje: “Parece que foi feito ontem. São temas atuais, como o homem comprado pelos coronéis para acabar com o povo. Tem ainda a vingança do humilde, do mais fraco”, reproduz Xavier (2001, p. 59).

 Em Os sertões, a profecia na verdade reza que: “O sertão virará praia e a praia virará sertão”, conforme os manuscritos de Euclides da Cunha. Segundo Nagib (2006, p. 28), a autora sugere que o litoral é rico, mas longe do alcance do sertanejo pobre. A ideia grandiosa do mar aparece como possibilidade utópica.

Glauber soube tirar proveito das lendas primitivas corroboradas pela geografia baiana e sua imensa costa e as articulou com Deus e o Diabo na terra do sol. O mar como configuração utópica, como rios de leite, conforme narrado em Os sertões, confere uma ressonância histórica e mítica brasileira. A importância do tropo marítimo está no imaginário cinematográfico brasileiro recente, bem como atesta o sentido inaugural do mar glauberiano e sua centralidade no imaginário nacional.

A profecia é repetida pelo vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey), que segue esses dois líderes na luta para se livrarem da miséria e da seca do sertão. Enquanto Rosa (Yoná Magalhães) é a personagem feminina e emblemática que mata o profeta, ela representa a figura que não aceita a opressão local.

Ainda explica Nagib que: “o filme termina com o aparente cumprimento da profecia utópica: a célebre a imagem do mar que substitui a do sertão”.  Rosemberg Cariry, que trabalhou o binômio sertão-mar glauberiano, a origem da profecia está ligada à crença dos índios remanescentes das tribos cariris numa “lagoa encantada”, cujo lugar mítico em sua origem, os cariris acreditavam que: “Os pajés cariris profetizavam que a Pedra da Batateira iria rolar e todo o vale do Cariri seria inundado e as águas, em fúria, devorariam os homens maus, que tinham roubado a terra e escravizado os índios” (2006, p. 25).

Novamente, de acordo com Ismail Xavier:

 

Em Deus e o Diabo, prevaleceu o impulso de mobilização para a revolta e a tonalidade do filme era de esperança, pois estávamos no período anterior ao golpe militar de 1964, no momento de luta pelas reformas de base, com a questão agrária no centro, esta mesma que ainda hoje permanece no centro das tensões sociais brasileiras (2001, p. 20).

 

 O fenômeno da migração sertaneja em direção às cidades banhadas pelo mar propõe, a meu ver, uma intenção de liberdade de interpretação dentro de um sentido alegórico. Conforme a obra Curso de estética: o belo na arte, Friedrich Hegel explica o significado da palavra alegoria e exemplifica na esfera religiosa:

 

A Virgem, o Cristo, os atos e o destino dos apóstolos, a penitência e o martírio dos santos são sem dúvida indivíduos completamente definidos; ao mesmo tempo, porém, o cristianismo compreende entidades espirituais gerais que não permitem ser representadas com precisão, na forma de pessoas com realidade e vida. Tal é o caso, por exemplo, de entidades abstratas e gerais como o amor, a fé, a esperança, etc. (2009, p. 446-447).

 

Nesse sentido, os sentimentos e valores considerados abstratos são retratados pela arte na forma de alegoria e cita como exemplo os povos antigos, que preferiram decorar os sarcófagos com representações mitológicas gerais como o sono e a morte.

Glauber Rocha para evitar problemas com a censura recorreu a um cinema de estilo alegórico. E nesse meu raciocínio, a alegoria do sertão-mar, e sua grandiosidade, parece ter exercido atração enquanto a possibilidade utópica como um paraíso terrestre ligado às águas do livro do Gênesis, no qual o Jardim do Éden tem o berço de num grande rio a ideia permaneceu no imaginário deste cineasta baiano.

No filme de Walter Salles o mar utópico como mostram as cenas finais, Tonho, um sertanejo engajado encontra o mar como um acontecimento mágico, que serve como refúgio, algo que não encontra justificativa no enredo do filme. Porém, o herói caminha pela praia calmamente e sobre as dunas de areia, até encontrar o mar, que o leva a segurar a lágrima em seco diante de tanta beleza.

 

O binômio sertão-mar

 

François Truffaut (1932-1984), cineasta que participa da primeira fase da Nouvelle Vague (Nova Onda), nos anos de 1960 na França. O movimento artístico tinha como principal característica a inserção de um discurso contestatório, que elevou o cinema francês a objeto de culto no mundo todo. E a riqueza e a complexidade das imagens marítimas do cineasta tornaram a principal matriz dos motivos utópicos hoje disponíveis no cinema brasileiro.

A cinematografia brasileira como de Glauber, na tentativa de recuperar uma nação utópica, perdida no espaço e no tempo, se alinhou à corrente do cinema nostálgico da Nouvelle Vague. E Nagib (2006, p. 48) comenta que ninguém antes de Glauber conferira ao mar tal carga simbólica. E o percurso em direção ao mar se encerra em Abril despedaçado, que o mar utópico final é uma abstração cinefílica remetendo tanto a Glauber e a produção de Deus e o Diabo quanto a Truffaut e seu filme Os incompreendidos (1959). Ainda segundo a autora, ambos se combinam para a construção do tropo marítimo no cinema brasileiro contemporâneo, caso de Abril despedaçado. A imagem do mar é reencontrada como um paraíso permitido a algumas classes sociais,, mas para o migrante nordestino está distante, e não apenas geograficamente, porisso torna-se utópico.

 

Considerações finais

 

Em Abril despedaçado, Walter Salles e seu humanismo transformou os seus personagens em zumbis sociais, que vagueiam na seca do sertão, no deserto purificador de um Brasil esquecido. Nele, os tipos criados são alienados como os membros da família de Tonho, que os leva ao desejo de resgatar a ‘terra prometida’ ou então, a busca pelas águas do mar que promete renovação. Porém, a tradição cultural do “olho por olho, dente por dente” cega e traz a vingança e a morte, que fomenta na perpetuação dos crimes através de gerações.

Em Deus e o Diabo, Glauber aplica uma natureza encantatória com o a música de Sergio Ricardo com os coros populares e conseguiu a admiração dos cineastas Fritz Lang e Buñuel. A ideia central do filme de Glauber é da revolução, no sentido de um desejo individual dos protagonistas, bem como, social, na medida em que existe uma necessidade premente de transformação. A revolução estética proposta pelo cineasta era de que o espectador deveria pensar sobre o que via na tela para a construção de uma nova sensibilidade e para entender o Brasil e o homem brasileiro.

 Além disso, o cineasta baiano e a sua estética cifrada e alegórica considerando a censura no nosso país na época consolidou numa ligação entre o passado e o presente a fim de retomar o diálogo entre cinema com os segmentos com os quais houve o intenso diálogo com a música (Caetano, Gil e Tom Zé), o Teatro Oficina e o impacto como a instalação de “Tropicália”, de Hélio Oiticica, no MAM do Rio de Janeiro.

O movimento Cinema Novo já passou, mas ainda vivemos na esperança de que o mar vire sertão e acabe com a falta de esperança e de perspectiva de vida. O mar, como uma metáfora do sonho feliz, é o sonho de uma pátria feliz em todos os seus sentidos.

 

Referências

 

ABRIL despedaçado. Direção: Walter Salles. Produção: Arthur Cohn. Brasil: Imagem Filmes, 2001, DVD (95 min). son., color.

BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre cinema brasileiro de 1958 a 1966. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 

DEUS e o Diabo na Terra do Sol. Direção: Glauber Rocha. Produção: Luiz Augusto Mendes. Brasil: Versátil Home Video, 2002. 2 DVD (185min.), color.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Curso de estética: o belo na arte. 2ª. edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgia, distopia. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

Autora: Rosângela Canassa

Formada em Psicologia Clínica (São Marcos), Mestrado em Artes Visuais (UNESP) e Doutorado em Educação, Arte e História da Cultura (Mackenzie). Atualmente realiza especialização em Produção de Conteúdo Audiovisual para Multiplataformas na Universidade Federal de São Carlos. Comunicação oral online apresentada junto ao Simpósio Temático no II Seminário Nacional de História Social dos Sertões, a realizar-se no período 04/05/2021 a 26/05/2021 em Caicó - Paraíba.

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