MITO NO MIDIÁTICO: AS REPRESENTAÇÕES DE SALOMÉ E O JOGO BESTIAL DA MULHER ANIMAL NAS ARTES E NAS MÍDIAS - UFSCAR - IV jornada internacional

 




Rosângela CANASSA, Doutora (UFSCar),

João Massarolo (Doutor, UFSCar)



Resumo: O mito de Salomé se estruturou no paradigma da sedução, do mal e da morte na vertente literária de Oscar Wilde (1854-1900). E ao esconder o seu lado fatal e petrificador como os olhos de Medusa, Salomé e a sua venalidade destrói a imagem do feminino primordial. A sua imagem impregnou as narrativas épicas e ancestrais, bem como, as artes, que continuam nos encantando mesmo na época anti-heroica da pós-modernidade, a partir das quais repetimos através de várias mídias para eternizar o mito.

Palavras-chave: Salomé, narrativas, mídias, histórias


Abstract: The myth of Salome was structured in the paradigm of seduction, evil and death in the literary aspect of Oscar Wilde (1854-1900). And by hiding her fatal and petrifying side like Medusa's eyes, Salome and her venality destroy the image of the primordial feminine. His image permeated epic and ancestral narratives, as well as the arts, which continue to enchant us even in the anti-heroic era of post-modernity, from which we repeat through various media to perpetuate the myth.


Keywords: Salome, narratives, medias, histories



O presente artigo é uma reflexão sobre o tema O mito no midiático: as representações de Salomé e o jogo bestial da mulher animal nas artes e nas mídias, enfocando a obra teatral de Oscar Wilde (1854-1900). E ao retomar este mito, a partir da mitologia cristã, pretendemos abordar a mulher e os aspectos da sexualidade, da androginia entre a psicanálise e a antropologia, cuja temática apresenta uma fascinante história da espécie humana e seu combate com as forças de seu desejo, principalmente no período do Simbolismo francês. Posteriormente, o movimento cultural se estendeu para Portugal e para o Brasil.

O objetivo é o compartilhamento do letramento com as narrativas bíblicas e seres mitológicos condicionadas às práticas pedagógicas, que visa a uma análise textual e imagética para o conhecimento das heroínas na era anti-heroica da pós-modernidade.

A mitologia bíblica e grega são assuntos, apesar de não serem reconhecidas como tal pelo nosso sistema educacional em que ninguém é formado em mitologia, ela faz parte de um campo que engloba uma variedade de ramos de conhecimento e disciplinas tais como os clássicos, a antropologia, o folclore, a história das religiões, a linguística, a psicologia e a história da arte (RUTHVEN, 2010, p. 15).

O método de interpretação textual e imagética é com base nos conceitos de Umberto Eco e do historiador de arte Erwin Panofsky (2009), que ambos conceituam a obra de arte como um objeto feito pelo homem, que deve ser experimentado esteticamente. Dessa forma, ao comparar forma, ideia e conteúdo podemos estabelecer diferenças entre uma obra e outra por meio da análise iconográfica e iconológica com o enfoque estético, o que está ligado ao estilo, ao gosto e ao modo de ser da época.

A iconografia é o ramo da História da Arte que trata do tema, ou da mensagem das obras de arte, em contraposição à sua forma. O sufixo “grafia” vem do verbo grego graphein, que significa “escrever”, e implica em se proceder de forma descritiva ou de modo estatístico. Nessa perspectiva, enquanto a iconografia é a descrição e a classificação das imagens, a iconologia é o método interpretativo que se origina da síntese, mais do que a análise de imagem, estórias e alegorias.

A fundamentação teórica abrange um contexto de múltiplas linguagens circulantes em torno dos mitos cristãos nas artes e nas mídias, que impacta diretamente nas relações de ensino-aprendizagem. E o aprofundado na História da arte e das literaturas clássicas possibilitam a obtenção de uma visão crítica e a uma ordenação dos interstícios plásticos como modo de pensar. Conforme a teoria francesa de Georges Didi-Huberman em sua obra O que vemos, o que nos olha (2010), as diferentes perspectivas teóricas a respeito do conceito das narrativas delineiam as principais reflexões das práticas da Psicanálise de Sigmund Freud e estabelecem paralelos com a arte cristã e mitológica.

No período do Simbolismo francês na Europa, no período da 2ª. metade do século XIX, a valorização da linguagem simbólica, a reinvenção da imagem ligada ao mistério, ao misticismo e ao subjetivismo vêm de encontro com a imagem da mulher fatal, por meio da literatura de Oscar Wilde, mitificada na personagem Salomé. O escritor irlandês recebeu a influência dos artistas simbolistas com o erotismo feminino ligado a um corpo idealizado e obsessivo. A femme fatale finissecular impregnou as artes, a literatura, o cinema e a escultura até chegar a era contemporânea como a dançarina bíblica Salomé, que se estruturou no paradigma da sedução, do mal e da morte na vertente literária de Wilde. A personagem ao esconder o seu lado fatal e petrificador como os olhos de Medusa, esconde a sua venalidade e destrói a imagem do feminino primordial, a imagem da Deusa mãe, provedora.

Salomé tornou-se famosa, embora pelos motivos errados como a tradição transformou-a num símbolo de perversão e lascívia. Entretanto, a verdadeira Salomé foi apenas um joguete nas mãos de sua mãe Herodíades, que a usou para saciar a sua vingança contra São João Batista, cujo nome significa “Deus faz graça”. Ele é filho do profeta Zacarias e de sua mulher Isabel. O casal não podia ter filhos, considerando a idade avançada da esposa, então o nascimento de João é um milagre, que por isso tem que cumprir uma missão:

Designar o Messias; proclamar doravante bem próximo o Reino de Deus; batizar no Jordão e submergir aí, os pecados do povo e o próprio Messias, no entanto sem pecado, mas destinado a receber sobre si todos os pecados do povo e da humanidade (PONNAU, 2006, p. 104).


Na peça Salomé, o pajem de Herodíades chama a atenção de seu amado para os encantos da lua e que ela não era inofensiva como o olhar destruidor da enteada de Herodes. A sua beleza era fascinante e ele comenta: “Olhai a lua! Como parece estranha! Dá a impressão de uma mulher erguendo-se do túmulo. Assemelha-se a uma mulher morta. Parece cismar sobre coisas fúnebres” (WILDE, 2019, p. 07). O belo tem ressonância com o mal e com a morte, algo que a arte decadente aproveitou e incluiu no seu mundo invisível estendido pelos meandros do inconsciente.

A contribuição essencial desse movimento e de seus artistas para a modernidade foi a questão da identidade sexual posta em xeque. Para o pintor Gustav Moreau, os temas favoritos eram os da Bíblia e dos seres mitológicos, o artista escolhia temas que davam a expressão a fantasias, os papéis sexuais e de identidade, que eram característicos de sua época. O tema da homossexualidade e do ser andrógino também entram em foco. 

Nas telas de Moreau, entre virgens e efebos, os estudos sobre Salomé, como a obra Aparição (1874-1876), o artista usou na criação de sua personagem um figurino luxuoso e transparente. As roupas de sua personagem apresentam um elemento essencial na arte da princesa judia, que combina com o gosto da época, do erotismo e da luxúria. Inicialmente, a obra do pintor, fundador do Simbolismo francês, era acadêmica e aos poucos, entretanto, foi transformando-se até emparelhar com as suas audácias surpreendentes do impasto e da cor (GIBSON, 2006, p. 34). 

A mulher é a pura representação do que se faz dela nessa época, e a sua aparência está relacionada a uma sexualidade perigosa e aterradora. A princesa, além de gerar controvérsias acerca de sua identidade sexual, mostra-se uma virgem apaixonada, cuja ferocidade se justifica pelo amor que sente por Batista, que a rejeitou, daí pedir a decapitação do profeta. O seu caráter pérfido e lascivo ganhou contornos andróginos na versão de Oscar Wilde.

O filme de Charles Bryant, lançado em 1923, revela a força do mito na questão da violência e da paixão devastadora de uma mulher apaixonada. Porém, Salomé oculta certos aspectos da sua figura dupla. Revela-se e depois torna a cobrir-se com o véu. Ela é um perigo para quem a observa e deseja por causa do efeito de seu olhar de Medusa. A dançarina também causava inveja na própria mãe, considerando que Herodes desejava a sua filha, explicitamente. E Salomé pede ao padrasto a cabeça de São João Batista numa bandeja de prata em troca de uma dança.

O ilustrador inglês Aubrey Beardsley apresenta Salomé neste filme como a mulher fálica, cujo plano de vingança é a decapitação, engendrando o elemento trágico do mistério do amor como sendo mais forte que o próprio mistério da morte. Do ponto de vista cênico, a personagem é intensa quando beija a cabeça degolada do profeta debaixo de suas vestes como “um sudário que vira vestido, casa, bandeira içada no alto de uma árvore” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 85).

O luto põe o mundo em movimento e provoca o padrasto, que por isso manda seus soldados matá-la por causa de seu ciúme violento. E a questão do sacrifício, segundo Georges Bataille, o filósofo aponta para a questão da experiência mística, que se observa nos transes e no arrebatamento dos santos, que constituem um desprendimento em relação a paixão religiosa (CANASSA, 2018, p. 73).

O que ocorre com Salomé e seu amor pelo profeta sugere quase que uma experiência mística, da paixão e do arrebatamento. Enquanto isso, os convidados de Herodes se dispersam e todos saem diante do horror da situação e a cabeça do santo fica junto ao corpo de Salomé cobertos por seu traje. Segundo alguns críticos da época, a censura impediu a exibição do beijo mórbido da cena, bem como as cenas de homossexualismo.

Aby Warburg, em sua obra Histórias de fantasmas para gente grande (2015), assimila a figura de Salomé no domínio da linguagem gestual e da figuração artística quando, por exemplo, a dançarina bíblica aparece como uma mênade grega, no momento de sua dança. No culto orgiástico a Dionísio, por exemplo, as Mênades dançavam com cobras vivas nas mãos, que enrolavam em volta da cabeça como um diadema, enquanto na outra mão levavam o animal dilacerado na dança sacrificial extática em honra à divindade (WARBURG, 2015, p. 237).

Warburg percebia o mito das Mênades, que são ninfas seguidoras e adoradoras do culto de Dionísio como uma metáfora da realidade social, que expressa expectativas humanas universais. Os mitos não são dogmas, como forma fixada de maneira permanente e rigorosa, servindo de fundamento para uma crença obrigatória, e é por isso mesmo que consegue manter um padrão de universalidade. Porém, não mudou a forma de como a História da Arte tem representado o feminino com a sua beleza maldita.

Nesse sentido, o que foi alterado nas artes são as formas de representação da mulher ao longo do tempo, como mostra o período do Simbolismo francês do fim do século XIX. Nessa construção fantasmática e consoladora: “faz abrir o seu olhar, como se abriria a cauda de um pavão para liberar o leque de um mundo estético, sublime ou temível e da esperança ou de temor” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 48). A princesa judia também é encontrada nas pinturas de Gustav Klimt, artista do período posterior como o Art Noveau (1880-1920), como a versão da dama dourada (Judith I), tema que se proliferou tanto na arte quanto no imaginário como uma figura emblemática. A associação da sexualidade com Eros e Tanatos não fascinou apenas Klimt e Freud, mas também toda a Europa da época. A mulher como figura dual, anjo ou demônio, são as heroínas de Klimt, que usavam a luxúria e a sedução e sorriam de forma lasciva.


F. 1 - Judith I – 1901
Fonte: livro Gustav Klimt: Art Nouveau Visionary (2006), p. 96


A obra Judite II (1909) de Klimt é Judite-Salomé, o que confunde o espectador. Porém, o artista resolveu realizar um manifesto e pintou o “hediondo” da mulher fatal. Ele trabalhava com o erotismo nas pinturas e causou muito escândalo na sociedade vienense.

Klimt representava a viúva que seduziu o general assírio para depois decapitá-lo e assim garantir a vitória do povo judeu. O artista austríaco privilegiava as mulheres sedutoras e cruéis da arte Simbolista e retratou as figuras bíblicas, além de Salomé é Judith de Holofernes com a intensão de evocar o feminino, o que provocava no observador fascínio e medo ao mesmo tempo. A sensualidade da mulher fatal confere a uma nova vida, a um ideal, a sabedoria idolatrada, que já não tinha conteúdo. O nu feminino de caráter erótico e sensual, não dentro da assepsia clássica começa a predominar na obra de Klimt (NÉRET, 2006, p. 15).


F. 2 - Judith II – 1909
Fonte: livro Gustav Klimt: Art Nouveau Visionary (2006), p. 96


A mulher fatal citada pela autora conforme as obras de Klimt se difere das personagens clássicas da Bíblia como Judith e Salomé, que serviram como inspiração para o artista, mas ele manteve a força e a coragem dessas personagens de tempos distintos na forma de representação das suas musas. O ponto de partida e o fundamento de uma atitude constante em face dessa “outra” importuna e perigosa que é a mulher fatal, a criação da mulher vem a ser, portanto, o texto de referência dos autores gregos. Analisemos a obra do pintor da Renascença, Andréa Mantegna, que foi um dos mais importantes artistas na Itália no século XV, homem que influenciou tanto contemporâneos quanto artistas posteriores. Ele retrata a narrativa de Judith, após ter decapitado Holofernes. E com o seu semblante de missão cumprida, a personagem mostra numa das mãos a cabeça para o povo de Betúlia, a sua cidade natal, e na outra carrega a espada que parece ter se quebrado com a decapitação, enquanto coloca a cabeça numa sacola.


F.3 - Judith e a cabeça de Holofernes (1431-1506) - Mantegna
Fonte: livro Significado nas Artes Visuais (2012), p. 59


Já Francisco Maffei, no século XVII, retrata uma jovem com uma espada na mão esquerda e na direita uma travessa na qual está a cabeça de São João Batista na obra Judith-Salomé, assim como o fez Klimt em Judite II (Salomé), em 1909.


F.4 - Judith-Salomé– Francisco Maffei – século XVII
Fonte: livro Significado nas Artes Visuais (2012), p. 60


A dúvida que surge diante do quadro é se a personagem é Judith ou Salomé? As personagens apresentam histórias distintas. A Bíblia nos fala de Judith e o degolamento do assírio que foi seduzido pela viúva:

A espada no quadro de Maffei estaria correta, porque Judite decapitou Holofernes com as próprias mãos, mas a travessa não concorda com a sua estória, pois o texto diz, explicitamente, que a cabeça de Holofernes foi posta num saco. Assim temos duas fontes literárias aplicáveis à mesma obra com os mesmos direitos e a mesma incoerência. Se a interpretarmos como Salomé, o texto implicaria a travessa, mas não a espada; se a interpretarmos como figuração de Judite, o texto explicaria a espada, mas não a travessa (Panofsky, 2012, p. 59).


Nesse sentido, o quadro de Maffei retrata a personagem Judith, porque ela é portadora da espada e não de uma bandeja. E o pintor Michelangelo Marisi, vulgo Caravaggio (1562-1609), também retratou Judite, a heroína degolando Holofernes na pintura do século XVI.

O pintor italiano Donato di Niccoló di Betto Bardi (1386-1466), mais conhecido como Donatello, confeccionou a escultura em bronze Judith e Holofernes (1455-1460), em que construiu a imagem de Judite antes da degola da cabeça de Holofernes. Panofski informa que, em 1504, a imagem estava em frente ao Palazzo Vecchio, em Florença, e dali foi retirado a mando de Francesco di Lorenzo Filarete, o arauto da Signoria, que sugeriu a substituição da imagem de Judite, porque representava um símbolo mortal e não era adequado àquele espaço de exposição.

A escultura de Donatello foi transferida para a Piazza de Signori, com seu gesto de dominação na espada levantada sobre a cabeça de Holofernes. A obra foi deslocada várias vezes para subordinar-se a esculturas masculinas de vários conquistadores. A Igreja, por sua vez, não considerou o sacrifício de Judite para salvar o seu povo, apenas condenou-a por ser uma mulher ameaçadora.


F.4 - Judith-Salomé– Francisco Maffei – século XVII
Fonte: livro Significado nas Artes Visuais (2012), p. 60


Portanto, Judite e Salomé sofreram transformações em suas representações pelos artistas, que as concebeu como manifestações de princípios simbólicos. A expressão é de Ernst Cassier referente aos valores “simbólicos” leva em conta suas características composicionais e iconográficas (Panofsky, 2012, p. 52-53).

Segundo o autor, esses valores simbólicos muitas vezes, são desconhecidos pelo próprio artista e podem até diferir enfaticamente do que ele conscientemente tentou expressar, sendo o objeto que se poderia designar como “iconologia” em oposição a “iconografia”.

As obras de Klimt as suas ninfas são multifacetadas e as figuras das três górgonas são ameaçadoras, são figuras do excesso, que o pintor parece vislumbrar como a crise do masculino, o fim dos impérios das figuras paternas, nem castradoras, nem

salvadoras. E no fundo da obra apresentam espermatozoides, óvulos e vulvas num universo “repugnante e perverso” como diziam os vienenses em relação às suas obras.


F. 6 - O Friso de Beethoven: as forças inimigas - Klimt – 1902
Fonte: livro Klimt (2011) - p. 25


Ele inspirou-se na ode à Alegria uma sinfonia que, por sua vez, originou-se de uma homenagem de Beethoven ao poeta Schiller. A obra é composta assim como a peça musical: (1) A Aspiração à Felicidade que se defronta com (2) As Forças Inimigas e, por último, (3) Hino à Alegria. As forças hostis são simbolizadas pelo monstro gigante Tifeu, que os próprios deuses combateram em vão, as suas filhas, as três górgonas simbolizando a luxúria e o impudor, a desmesura e a mágoa ardente (NÉRET, 2006, p. 40).

Conforme o estudo de Jean-Paul Bouillon sobre as obras de Klimt:

[...] a manifestação da sexualidade e o voyeurismo são fundamentais e que abundam e sustém as bases do fresco, tal como ela é tratada por Klimt e não chega a ser uma verdadeira libertação. Bem pelo contrário, ela lança-se num duplo pesadelo: o da mulher castradora, desta feita pelo seu próprio sexo e não mais pelo desvio da imagemsimbólica de Judith I; e o da mulher luxuriosa, cujo prazer que ela proporciona e visa primeiro a ela mesma (a Volúpia e muitos mais desenhos eróticos de Klimt) constituindo também uma ameaça ao homem. A primeira aparece sob a forma das três Górgonas [...]. A segunda, oferece ela mesma, no grupo simétrico, do outro lado do Tifeu [...] e a referência à sífiles que Klimt tinha particularmente receio [...] (HEYL, 2009, p. 99).


Segundo o autor, a representação do feminino em Klimt no friso anuncia a crise de um modelo liberal e masculino. As forças inimigas são do sexo feminino, salvo o Tifão, que aparece menos ameaçador. As mulheres górgonas são alegorias da natureza instintiva, incontrolada e selvagem, sendo a representação da verdadeira face das forças inimigas com seu aspecto ameaçador, que brota das fantasias do medo masculino (MOLINA, 2006, p. 143).

Apresenta ainda Molina (2006) que Sigmund Freud, em seu texto A cabeça de Medusa (1922), interpreta a mulher coberta pelo véu como uma alegoria da castração feminina, cujo olhar sem disfarces transforma os homens em pedra. O seu olhar, que petrifica, gera o medo e traduz a difícil elaboração de conflitos internos. O seu intento de descobrir o mundo das mulheres, Freud recorreu à figura híbrida da górgona como exemplo de sua teoria do Complexo de Castração feminina.

Na visão freudiana, o mito está relacionado à origem da sexualidade infantil da mulher, que a interpreta como o genital feminino castrado, diferentemente do menino. A cabeça decapitada da Medusa com a sua aparência de serpente é uma “cabeça genitalizada”, um deslocamento de órgãos sexuais para cima de tal forma que a boca simboliza a vagina dentada; a serpente, os pelos púbicos. Para os homens, descobrir a Medusa significa encarar o medo de olhar para os órgãos sexuais femininos.

A cabeça de Medusa, uma das três irmãs Gorgoni foi cortada por um golpe da espada de Perseu e o terrível monstro, com o rosto perturbado pelo horror e pela surpresa, parece lançar um grito de pavor. O herói sabia que seu olhar petrificador poderia transformá-lo e possuído pela sua astúcia cortou-lhe a cabeça, antes que virasse pedra.

Segundo a lenda de Medusa, era ela uma jovem bela que ousou afirmar que os seus cabelos eram mais bonitos que os da deusa Atena. Esta, como punição, transformou a jovem na mulher com cabelos de serpentes e olhar petrificador da Medusa. O seu corpo anormal não poderia satisfazer os desejos masculinos, que os atrai

mas leva a vítima à morte. O monstro feminino era retratado em escudos dos séculos 16 e 17 e Caravaggio elabora uma imagem expressiva com o rosto da górgona. O ato violento do herói Perseu, numa resposta de vingança e onde filetes de sangue, o monstro ctônico – das profundezas da terra – foi transformado em uma máscara sem corpo, e o seu semblante foi adotado como a ira feminina na cultura pop.

Recentemente, a Medusa viralizou na internet, a partir da obra do artista argentino Luciano Garbati (1973): a estátua Medusa com a cabeça de Perseu, que se refere às milhares de mulheres que escreveram para ele sobre a escultura, explicando que muitos a consideraram catártica e como símbolo de justiça de sobreviventes de abuso sexual. A estátua está localizada do lado de fora do tribunal em que Harvey Weinstein estava sendo julgado por sua série de crimes sexuais contra mulheres. O movimento sobre a violência sexual e a escultura encontraram a fama em 2018, após o ressurgimento do movimento #MeToo, enquanto símbolo de resistência (www.faroartesepsicologia.blogspot.com.br – acesso 22/02/2021).

O artista, ao montar a sua estátua, fez a górgona carregar a cabeça de Perseu como um troféu, ao invés da cabeça de Poseidon, seu estuprador. Julgo que esta figura mítica possui a bipolaridade do bem e do mal, que são dois lados da mesma moeda, simbolizando a duplicidade desse mito. Porém, o artista se rendeu à beleza da Medusa, um dos monstros da mitologia clássica mais figurada na História da Arte.


F. 7 - Medusa - Luciano Gabarti - 1973
Fonte: www.faroartesepsicologia.blogspot.com.br



Considerações finais

Conclui-se, portanto, que os artistas do Simbolismo lançaram mão do feminino com cabeça de animal, o que equivale à negação do feminino, como no caso do mito de Medusa. Os cabelos da górgona são frequentemente representados como serpentes. Segundo alguns críticos, o olhar de Medusa de Caravaggio foi inspirado nos terríveis olhares dos condenados à execução no instante que antecede a sua morte com a forca e retratado pelo artista.

Wilde com sua Salomé, foca no amor ligado à morte, ao trágico que é engendrado na obra. Infelizmente, o escritor não viveu o suficiente para acompanhar o sucesso de sua obra, a exemplo da dançarina Isadora Duncan, que interpretou Salomé e a dança dos sete véus para suas audiências. Em 1908, pelo menos 24 Salomés estavam dançando ao mesmo tempo nos palcos de Nova York, mulheres que eram impossíveis de evitar ou ignorar. A propósito, Richard Strauss compôs Salomé em 1905.

A beleza maldita das femme fatales remonta à Antiguidade Clássica, enquanto os românticos e decadentistas deram relevo particular ao tipo de mulher vampiresca, bela, impura e funesta. A beleza produz estados d`alma, como a beleza terrena ou aquática do Art Nouveau de Klimt, e a mulher pode ser o que quiser.



Referências

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CANASSA, Rosângela. As mulheres no cinema de Pedro Almodóvar Caballero e a reinvenção do melodrama. Novas Edições Acadêmicas, 2018.

________________. Medusa símbolo contra a violência sexual feminina. In Faro artes e psicologia (blog). [S.l.], 2020. Disponível em: http://faroartesepsicologia.blogspot.com/2020/10/medusa-simbolo-contra-violencia-sexual.html. Acesso em: 22 de fevereiro de 2021.

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SOIHET, Rachel (org.). O corpo feminino em debate. São Paulo: UNESP, 2003.

WARBURG, Aby. Histórias de Fantasma para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

WILDE, Oscar. Um marido ideal e outras peças. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.


Autora: Dra. Rosangela Canassa - psicóloga clínica com mestrado em Artes Visuais (UNESP), doutorado (Mackenzie) e aluna do curso de especialização da UFSCar - contato: rocanassa@uol.com.br


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