Análise do filme Bonecas Russas e o mito de Pigmalião

 

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Cartaz do filme

A comédia romântica Bonecas Russas, com roteiro e direção de Cédric Klapich, foi lançado na França, em 2005, cujos principais atores são: Romain Duris (Xavier), Kelly Reilly (Wendy), Andrey Tautou (Martine) e Cécile de France (Isabelle).

O filme ganhou o prêmio ‘César’ (o Oscar francês) de atriz coadjuvante para Cécile de France (que interpreta a amiga lésbica de Xavier) e indicado para as categorias de montagem e atriz coadjuvante para a inglesa, Kelly Reilly (namorada de Xavier).

Este filme é a sequência da comédia Albergue Espanhol, de 2002, do mesmo diretor e elenco, que conta a história de Xavier, fugindo de Paris, e das expectativas de sua namorada (Martine) e de sua família; ele passa o seu último ano de faculdade em Barcelona, como parte de um programa de intercâmbio estudantil.

Logo após sua chegada, Xavier se vê em um caldeirão de misturas culturais, quando se muda para um apartamento repleto de alunos estrangeiros tão singulares quanto os idiomas que falam.

Ao lado de seus novos amigos, Xavier aprende uma hilária e esclarecedora lição sobre como viver, rir, se divertir e também, como fazer amor com uma mulher, a partir do ponto de vista de sua amiga lésbica, que também mora no Albergue.

No filme Bonecas Russas, passam-se cinco anos e eles se reencontram na ocasião do casamento de um deles, o inglês William, que se apaixonou por uma bailarina russa e que se mudou para São Petesburgo, onde ocorre a cerimônia.

Xavier é um parisiense, de aproximadamente 30 anos, que trabalha como escritor de telenovelas e jornalista free-lancer. Seu sonho é poder escrever suas histórias e também encontrar a “mulher dos seus sonhos”, apesar de achar o casamento uma “palhaçada”.

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Xavier (Romain Duris)

Xavier está com muitas dívidas e não sabe como saldá-las, então, resolve fazer um trabalho como ghost writer de uma modelo famosa e escreve suas precoces memórias, ao mesmo tempo, que ela o seduz.

Depois, ele aceita um trabalho para uma TV inglesa e parte para Londres, onde terá de escrever uma história de amor. E lá, envolve-se com Wendy, a irmã de Willian que vai se casar.

Wendy é uma moça bonita e sensual, mas tem um relacionamento complicado com o namorado. Depois, a moça termina esta relação com o rapaz, ao perceber que está muito atraída por Xavier. Mas, ele fica dividido entre Wendy e a sua amiga britânica, que lhe desperta o desejo com seu corpo com formas perfeitas. Enquanto isso, Wendy cita: “eu amo o que não é perfeito”.

Xavier e Wendy se conheceram na Espanha e se reencontram em Londres, e ela

acaba ajudando o amigo a escrever a história, mas antes, ela recomenda alguns livros para ele ler e poder entender os sentimentos humanos.

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Wendy (Kelly Reilly) e Xavier (Romain Duris)

Ele conta a história que está escrevendo, no seu notebook, o que provoca mais de um final e, também, apresenta uma alteração nas sequências das cenas, com idas e vindas. Ao escrever a tal história de amor, várias perguntas lhe ocorrem, do tipo: “como vão se apaixonar”? E Xavier chega à conclusão de que: “só penso em mim mesmo, não conheço o amor e como vou escrever sobre ele?”

Em Londres, Xavier reencontra seu melhor amigo, que lhe dá uma dica: “quando encontrar o amor de verdade, saberá na hora!” Será?

Sua ex-namorada é Martine, que é mãe solteira e que mora com o filho de, aproximadamente, 5 anos de idade. Mas, ela ainda sonha em conhecer o “príncipe encantando” e enquanto ele não vem, vive à sombra do ex. Depois que se separou dele, ela ficou muito carente e dependente de sua companhia. Isso vai provocar uma angústia em Xavier que não sabe como se livrar dela.

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Xavier (Romain Duris) e Martine (Andrey Tautou)

Xavier mora com sua amiga Isabelle, uma moça inteligente, bonita e que trabalha com mercado financeiro, e sua opção sexual é por mulher. Ela recomenda que ele deixe de procurar a Cinderela, porque ela só existe nos contos de fada e procure uma mulher de verdade.

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Isabelle (Cécile de France) e Xavier (Romain Duris)

O título do filme “Bonecas Russas” é uma metáfora e refere-se ao herói da história, que está procurando a mulher ideal dentro da mulher com quem ele se relaciona no momento, e vai procurando, sucessivamente, semelhante às bonequinhas coloridas, de tamanhos diferentes, mas com a mesma figura e que se encaixam uma dentro da outra.

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Boneca russa

As bonecas russas (babuchkas) foram criadas com o intuito de se encaixar umas nas outras, recriando a mesma figura, de um outro tamanho. A cada descoberta de uma figura, em uma montagem feita em camadas que se sobrepõem, uma nova e surpreendentemente curiosa figura menor se apresenta. São artesanatos, originariamente, pintados um a um, que vão criando em seu conjunto a imagem de infinidade. É como se pudéssemos sempre esperar mais e mais bonecas saindo dali de dentro.

E as personagens apresentadas neste filme podem ser simbolizadas como as bonecas russas, porque elas se descobrem perante as diversas experiências que vivem, e consequentemente, com as experiências novas, elas têm a oportunidade de reconher a si próprias e a infinidade de características que as fortalecem e as acompanhavam em seu trajeto de vida.

A mulher consegue se perceber maior ou menor, até com variações que não aparecem de pronto, pois o jogo de poder se transformar e se descobrir, encaixando-se para se encobrir ou se revelando, forma sua história, segundo Dr. Luiz Cuschnir (Coordenador do Gender Group do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, 2007).

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Xavier e Wendy

A ATRAÇÃO FÍSICA E A ESCOLHA DO PARCEIRO

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Xavier e Wendy

A atração física é o início de um jogo de sedução, carregado de fantasias e sentido psicológico. Embora a Psicologia já tenha assimilado a sexualidade como parte fundamental do psiquismo humano, há pouca bibliografia a respeito do tema.

O aspecto evolucionista ainda impera e trata a atração física como nada mais que a busca de genes da melhor qualidade para gerar filhos. Mas, acredita-se que para ocorrer a atração física entre um casal existem mensagens subliminares, que são inconscientes e cujas mensagens vão muito além do objetivo da realização da seleção natural para o acasalamento. Então, o que nos leva a ficar atraídos por aquela pessoa e não outra?

Será a combinação de vários fatores, na maioria deles, são inconscientes e o principal é que a escolha do parceiro nos remeta a nossos pais, sendo estas figuras o nosso primeiro objeto de amor.

Para o apaixonado, tudo é lindo, maravilhoso, até com a expectativa de ter os seus desejos adivinhados pelo parceiro tal como já ocorreu em sua primeira relação simbiótica. E a percepção de que somos separados do outro nos traz angústia, porque acabamos constatando que somos sós e precisamos do outro, ainda que sem nenhuma garantia de que seremos correspondidos. Daí surge a dependência, os medos e incertezas em relação ao amor.

A confusão entre amor e dependência gera a formação do casal simbiótico, parecendo que as pessoas não têm vida própria. Unem-se porque precisam um do outro e não porque querem estar juntos.

A Psicanálise cunhou o termo “relação simbiótica”, na qual mãe e bebê se relacionam como se fosse um único ser. A criança não tem noção de que é um ser separado da mãe, que é resultado desta simbiose. E nesse período do pós-nascimento há várias experiências que comprovam objetivamente tal sintonia, tanto que o bebê, ao comunicar seus desejos e necessidades, vive em total dependência, alternada com momentos de muito prazer (quando há correspondência) e de muita frustração, quando se dá conta de que não está sendo satisfeito (ou correspondido).

Quando se inicia uma diminuição da simbiose como decorrência da maturação físico-neurológica, começam a surgir as condições para uma relação propriamente dita, estando o bebê já apto, ainda que rudimentarmente, a perceber-se separado da mãe. Estas emoções do bebê vivenciadas em relação à mãe são tão fortes que ficam impregnadas no seu inconsciente e serão reeditadas na fase adulta, ao se relacionar com o parceiro (Costa, 1996).

É com base no suceder dessas experiências concretas de dependência na infância que serão apoiadas as condições de se submeter a experiências num relacionamento amoroso, bem como, a escolha do objeto amado.

A escolha do parceiro será sempre parcialmente consciente mesclada de fantasias e desejos, mesmo que o outro esteja longe de poder realizá-los. Revive-se com intensidade a sensação de dependência e apego, que estará sempre presente na relação afetiva, porém mais equilibrada numa pessoa amadurecida (Costa, 1996).

As características significativas de amadurecimento são a capacidade de perdoar e o respeito à autonomia do outro, o que implica tolerar que ele possa continuar sendo quem é, sem que isso traga perigo à relação. Ao tomar consciência dessas emoções, poderemos nos libertar de uma atitude mais infantil ou mais primitiva, atingindo estados de maior equilíbrio mental, sempre através da percepção de nós mesmos (Costa, 1996).

O personagem Xavier está num outro extremo, que é o não querer estar junto porque teme o vínculo amoroso. O amor é sinônimo desta relação de dependência e ele imagina que terá que abrir mão da sua liberdade e de sua individualidade.

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Xavier (Romain Duris)

Na fantasia de Xavier, o amor lhe impõe um preço alto demais, que ele não quer pagar, pois acredita que só é possível amar se negar a sua própria individualidade, ao fundir-se com o outro perderá sua liberdade.

Ele imagina, também, que depois de concluída a união vem o medo da perda do objeto amado, tudo ao mesmo tempo, enfim, amar é muito complicado; por isso, o medo do compromisso, o medo da entrega e do envolvimento. Xavier está sempre se defendendo das próprias emoções, por meio da rigidez de seu ego, que configura em uma defesa contra a dor da mágoa de coração partido (gerado pelos pais ou outros amores não correspondidos) e a possibilidade de que o seu coração possa ser partido novamente. Junto com esta defesa está o temor inconsciente do abandono que é o mesmo que o próprio medo do amor. Portanto, Xavier, por mais que tente, não consegue encontrar o amor, inconscientemente não está aberto para isso.

Outra defesa, gerada pelo medo do amor, é não demonstrar o que sente e que pode dar à pessoa uma sensação de poder nas relações, mas, ao mesmo tempo, reduz em muito a possibilidade de confiança. Nesse sentido, o autocontrole, que parece uma qualidade tão admirável, representa o medo do amor. O homem que não consegue desvencilhar-se de suas defesas, erguidas para proteger seu coração das mágoas, jamais amará (Lowen, 1990).

Portanto, se não amarmos, não corremos o risco de perder o amor e não podemos ser abandonados, mas ficamos aprisionados por nossas defesas que, pelo simples fato de existirem, asseguram que nossos piores receios são justificados, conforme nos explica o psicanalista Dr. Alexander Lowen.

Lowen (1990) acredita também que, no nível mais profundo, o medo do amor é idêntico ao medo do sexo oposto. No inconsciente, todos os homens identificam as mulheres com suas mães, da mesma forma como estas identificam os homens com seus pais. Essa é uma identificação natural. Se o genitor do sexo oposto ao nosso foi delicado, amoroso e forte, teremos pouca dificuldade com nosso parceiro, mas, isso quase nunca acontece. A maioria das pessoas lembra que sua relação com os pais era repleta de conflitos.

Em termos simples, crianças saudáveis são produto de pais amorosos e o mais importante é que amem um ao outro. São pais que sexualmente se satisfazem um com o outro, acrescenta Lowen.

Segundo o Dicionário de Símbolos, o desejo amoroso e sua satisfação é a chave da origem do mundo. As desilusões do amor e a vingança que as seguem, é o segredo de todo o mal e do egoísmo que existe na Terra (Cirlot, 1984).

Esta é uma ideia geral que temos do amor e, também, como se todo o amor acabasse em desilusão e o que é pior, em vingança.

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O amor e a vingança

Herdamos uma grande variedade de visões e conceitos sobre o amor, como observa o sociólogo Domenico Di Mais: “Grande parte do amor não consiste em fazer coisas, mas em pensar, recordar, imaginar, fazer planos, tendo como objeto o indivíduo amado.”

Conclui-se então que, para o sociólogo, o amor está associado apenas à idealização do ser amado, nada de concreto.

A realidade é que as relações de amor nos marcam profundamente, porque o objeto amoroso se inscreve psiquicamente em nós, deixando seus rastros, incluindo aí os afetos de nossos pais, a relação simbiótica com nossa mãe, relações com irmãos, professores etc.

Também é válido o amor platônico, mesmo porque acredita-se que todas as relações afetivas que vivemos são importantes, mesmo que não tenham progredido. E reconhecendo que cada uma das experiências vividas pelas pessoas, em qualquer nível, profundidade ou intensidade, tem seu próprio valor, nos enriquece e nos dá a oportunidade de reconhecemos a nós mesmos através do outro, e que vai promover o nosso autoconhecimento. Mas é impossível para o amor se enraizar ou fazer parte da vida de uma pessoa, se ela se mostra endurecida, inflexível e incapaz de se interessar, profundamente, pela essência do outro. Quando existe a parceria de verdade, isso significa que o casal deseja o melhor para cada um e para a relação como um todo (Matarazzo, 2003).

O amor vitalício virou virtual: a ética do ficar

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Cupido e Psiquê crianças

Antigamente, os obstáculos entre os amantes eram de natureza exterior, como, por exemplo, o amante era casado, ou então existiam as diferenças sociais, raciais, idade etc.

Atualmente, os obstáculos entre os amantes são internos, como, por exemplo, as afinidades entre ambos, o medo do abandono, o medo da entrega, o medo da perda da individualidade, da ruptura. A vontade e o o medo caracterizam a paixão moderna e o “ficar” foi a solução encontrada para os encontros descartáveis.

A ética dos encontros descartáveis baseia-se em encontros efêmeros, cujo objetivo é de saciar o desejo. O que pode acontecer em minutos ou alguns dias. A sexualidade é apenas um objeto de consumo, o que poderia proporcionar neste encontro com o outro, o conhecimento, o descobrir-se mutuamente.

Na sociedade de consumo, o homem vive fechado em casa, sendo o homem doméstico e contemporâneo que perdeu a referência de ser homem. Antigamente, quando o homem era um guerreiro, suas conquistas, seu desempenho era público. Agora, seu desempenho é privado, sendo a esposa, a testemunha de sua virilidade e de suas conquistas.

Com isso, os homens ficaram angustiados com seu desempenho sexual (foi o que lhes restou), porque seu o foco é o seu pênis, símbolo de sua virilidade e poder. Obcecados pelo seu “equipamento”, porque estão focados em seu desempenho sexual, desviam a sua atenção e a maioria deles consegue perpetuar: a incomunicabilidade, a superficialidade, a não-entrega em relação à parceira e dificulta o progresso da relação.

Existem homens que temem o fracasso, e existem outros que temem a própria felicidade.

O amor nos ampara porque nossa sociedade não cria condições para vivermos em grupo, por isso vivemos solitariamente, principalmente nas grandes cidades. E tudo isso levará à distância abissal que separa o homem da mulher. As relações “fast sex”, como são chamadas hoje, estão impedindo, assim, a construção de relações amorosas mais duradouras, sem tantas idealizações e sem tanto medo da real intimidade, que no fundo representa o medo de ser feliz.

Poder se perder no outro e depois voltar para si, num gostoso vai-e-vém, nada impede de cada um ser um, sem ter que perder a própria individualidade. A paixão é uma experiência fabulosa, que vicia, principalmente quando o sexo é da melhor qualidade. E é bem difícil renunciar ao amor porque ele nos tira os pés do chão. Deslumbrados, podemos perder nosso rumo, mas depois, podemos voltar ao que somos, usando a bússola de nossa mente e coração.

Xavier procura o amor, porque até precisava experimentá-lo para poder escrever suas novelas. Mas tinha que ser a mulher perfeita e o seu ideal de perfeição ficava como requisito principal para o amor. As decepções que ele sofria eram em decorrência de uma idealização que ele fazia das mulheres, e tudo aquilo que ele queria era de acordo com seu imaginário, mas fora da realidade.

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Xavier e Cécile

Os psicólogos explicam que, muitas vezes, a atração física se dá pelo o que os diferencia. Ou seja, a gente deseja o outro, por aquilo que não temos em nós, com a fantasia de que, ao nos unirmos ao outro, nos apossamos de tudo aquilo que ele tem e nós não temos. Por exemplo, o homem encontra na mulher amada aquilo que ele não tem, portanto, aquele pedaço de si que o complementa e que vai se configurar em um encontro consigo próprio, os sentimentos são exaltados, a pessoa amada sintetiza o que sempre se desejou, é o império da paixão narcisista. Esse encontro consigo mesmo, em dupla via, retrata o homem dividido que para ser um precisa de outro, usando freneticamente o outro para encontrar o uno. Assim, dentro de um contexto de dependência, gerado pela paixão narcisista, ele aprende a linguagem do amor, como se dissesse “eu te desejo enquanto você estiver disposto a se encaixar no meu ideal de perfeição”.

O preço que pagamos ao amar não precisa ser alto, na medida em que, mesmo nos relacionando, investimos em nós mesmos, em novos interesses. Quanto mais fortalecidos, mais preparados estaremos para enfrentar as paixões que virão, inclusive, os desapontamentos.

A incerteza do futuro, do destino que tomará a relação amorosa pode ser um bom estímulo que inflamará nossos corpos e salvará nosso coração do tédio e da solidão ou

então teremos que recitar o poema de Vinicius e Jobim:

“Eu quis amar mas tive medo.

E quis salvar meu coração.

Mas, do amor guarde um segredo.

O medo pode matar o seu coração”.

A LENDA DE PIGMALIÃO E O FILME BONECAS RUSSAS

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Pigmalião e Galatéia

Xavier procura pela mulher ideal e a sua forma de abordar as mulheres, na tentativa de encontrar aquela perfeita, com a esperança de que na próxima ele encontre a última, a pequena escondida, a boneca russa, acabou gerando nas garotas que conheceu a sensação de terem sido usadas e abandonadas.

Para entendermos o comportamento do protagonista e sua busca pela mulher perfeita, vamos retomar o mito de Pigmalião, que percorreu uma vivência semelhante ao nosso herói na busca da mulher ideal.

As narrativas mitológicas nos proporcionam um sentido às várias formas de estar no mundo e, também, revelam muito de nós mesmos, em várias etapas de nossa vida. E simbolizar nossa interioridade pode ser possível por meio dos mitos e suas lendas.

Esta história mitológica simboliza o efeito de nossas expectativas e percepção da realidade, e na maneira como nos relacionamos com ela, “esculpindo” a nossa realidade, de acordo com nossas expectativas e desejos.

Pigmalião, rei de Chipre e escultor, vivia solitário por não encontrar a mulher ideal para se casar. O soberano via tantos defeitos nas mulheres que acabou por abominá-las e resolveu viver solteiro. Como era escultor, executou com maravilhosa arte, uma estátua de marfim, tão bela que nenhuma mulher de verdade com ela poderia comparar-se. A arte, por sua própria perfeição, ocultava-se e a obra parecia produzida pela própria natureza.

Pigmalião admirou sua obra e acabou apaixonando-se pela criação artificial. Muitas vezes, apalpava-a, como para se assegurar se era viva ou não, e não podia mesmo acreditar que se tratasse apenas de marfim. Colocou vestidos sobre seu corpo, anéis em seus dedos e um colar no pescoço. Vestiu-a e ela não pareceu menos encantadora do que nua. Deitou-a num leito recoberto de panos coloridos e chamou-a de esposa e colocou-lhe a cabeça num travesseiro de plumas macias, como se ela pudesse sentir a maciez.

Estava próximo o festival de Afrodite, celebrado com grande pompa em Chipre e vítimas eram oferecidas, os altares fumegavam e o cheiro de incenso enchia o ar.

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Cupido e Afrodite

Depois de ter executado sua parte nas solenidades, o escultor de pé, diante do altar, disse, timidamente: “Deuses, vós que tudo podeis, daí-me por esposa... (não se atreveu a dizer “minha virgem de marfim”) alguém semelhante à minha virgem de marfim.”

Afrodite, que estava presente no festival, ouviu-o e compreendeu o pensamento que ele não se atrevera a formular. E com muita benevolência, a deusa fez a chama do altar erguer-se três vezes no ar, sendo este o seu encantamento, para transformar a estátua em mulher.

Ao voltar para casa, Pigmalião foi ver a estátua e debruçando-se sobre o leito, beijou-a na boca e seus lábios pareceram-lhe quentes. Beijou-a de novo e abraçou-a; o marfim mostrava-se macio sob seus dedos. Alegre, o escultor duvidou que tivesse se enganado de novo, como em outras vezes, quando pensava que estava apaixonado por alguma mulher. E com o ardor de um amante, ele toca o objeto de suas esperanças, aquela estátua estava realmente viva! E chamou-a de Galatéia.

O corpo quando apertado cedia aos dedos para recuperar, depois, a elasticidade. Afinal, Pigmalião não encontrou palavras para agradecer à deusa, que tanto abençoou aquela união!

Casaram-se e tiveram um filho chamado Pafos, conforme Bulfinch (2002) nos conta.

Pigmalião usou as mãos para esculpir a linguagem do amor, em forma de mulher, conforme seus desejos e com o auxílio de Afrodite. E a transformação da estátua de mármore esculpida por ele, em uma linda mulher de carne e osso, conforme seus desejos, em Psicologia, é chamada de efeito Pigmaleão ou efeito Rosenthal.

Com esta lenda de Pigmaleão aprendemos que, quanto mais esperarmos de nós mesmos mais alcançaremos o sucesso, ordenando-nos a conseguir até o impossível, e por que não? Aos olhos dos deuses tudo é possível.

Na contemporaneidade, a felicidade depende da abundância, inclusive, o objeto da escolha amorosa fica como subproduto. A alta rotatividade nas escolhas amorosas e a publicidade ordenando também a novidade vai gerar um círculo vicioso. Daí as escolhas amorosas serem frágeis e efêmeras, em decorrência deste mercado de consumo e do individualismo de cada um, porque não permite que a escolha se fixe.

O indivíduo vai viver repetindo tal comportamento, brincando com várias “bonecas” até que um dia “a ficha cai”, possibilitando-o a um “desarranjo desse comportamento”, como Xavier quando se apaixona por Wendy e decide amá-la. Se ele não entrasse em contato com este sentimento, encarando suas inseguranças, sem ter que brincar “com todas as bonecas” que funcionavam como fuga, talvez continuasse perpetuando seu comportamento desfavorável e continuaria sem uma companheira, não conheceria o amor, não poderia escrever sobre este sentimento tão singular.

Referências

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: (a idade da fábula): história de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Editora Moraes Ltda, 1984.

COSTA, Moacir. Vida a dois. São Paulo: Mandarim, 1996.

CUSCHNIR, Luiz. A mulher e seus segredos: desvendando o mapa da alma feminina. São Paulo: Larousse do Brasil, 2007.

LOWEN, Alexander. Amor, sexo e seu coração. São Paulo: Summus, 1990.

MATARAZZO, Maria Helena. Coragem para Amar. Rio de Janeiro: Record, 2003.

Revista Viver Mente & Cérebro, março de 2007.

Filmes:

Albergue Espanhol – DVD – 124 min., comédia, 2003.

Bonecas Russas – DVD – 129 min, comédia romântica, 2005.

Sites / Fotos:

Disponível em: www.marsdistribution.com/site/poupeesrusses Acesso 29/9/2007.

Disponível em: www.google.br Acesso 10/10/2007.

Ficha técnica:

Título: Bonecas Russas

País: França, Reino Unido

Ano: 2005

Diretor: Cédric Klapich

Elenco: Romain Duris (Xavier), Kelly Reilly (Wendy), Andrey Tautou (Martine) e Cécile de France (Isabelle).

Gênero: comédia romântica

Comentários

Cacau Ras disse…
Ótima analise, Obrigado pela colaboração, péssoas como você faz diferença nesta sociedade.
Que bom que gostou!
Rosângela

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