“A PELE QUE HABITO”: O LOBO NA PELE DO CORDEIRO

 

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A morte e a beleza são coisas profundas, que contêm tanto azul e tanto negro que parecem irmãs terríveis e fecundas com o mesmo enigma e igual mistério.

(Victor Hugo)

 

O filme “A pele que habito”, de Almodóvar passa-se na cidade de Toledo (Espanha) e conta a história do cirurgião plástico Robert Ledgard (Antonio Banderas), um homem de meia-idade, sombrio, de poucas palavras e demonstrações de afeto.

O Dr. Ledgard, depois da perda da esposa num acidente de carro e da filha que se suicida (Blanca Suárez), se dedica a construir a pele humana perfeita.

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Robert (Antonio Banderas)

A pele é derivada de uma mistura do DNA humano e do suíno e denominada de GAL em memória à sua esposa, que morreu depois de ter sofrido queimaduras pelo corpo todo, causada pelo acidente de automóvel.

O filme é baseado no livro “Tarântula”, do escritor Thierry Jonquet e também pelo filme “Os olhos sem rosto”, do francês Georges Franju, produzido em 1959.

O FILME DENTRO DO FILME: ALMODÓVAR E FRANJU

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Cena do filme “Olhos sem Rosto” – 1959

 

O procedimento do “filme dentro do filme” não é novo e sua multiplicação é comum na filmografia de Almodóvar.

Não se trata tanto de citar para homenagear e sim provocar uma reflexão sobre o próprio filme. (Lipovetsky, 2009, p. 126)

No filme de George Franju, o cirurgião plástico realiza as suas experiências a partir da pele dos cães, que ele abriga em sua mansão, depois que os animais são abandonados pelos donos.

Tanto no filme de Franju, como no filme de Almodóvar, os médicos encobrem as suas experiências e omite aos seus colegas do meio científico, que estão tentando fabricar uma pele humana, por meio de um outro ser vivo.

No filme de Almodóvar, a pele nova que o Dr. Ledgard constrói será capaz de resistir à dor, mas não é permitida a sua fabricação pela medicina. A transgênese é um método proibido pela comunidade científica, para ser utilizada em experiências com os humanos.

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Dr. Ledgard (Antonio Banderas)

Os transgênicos são organismos que, mediante técnicas da engenharia genética, contém materiais genéticos de outros organismos. Desde a década de 70, estas experiências vêm sendo realizadas na área dos alimentos.

6 ANOS ANTES...

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Robert e Norma (Blanca Suárez)

Depois de um tempo de duração, o filme retorna 6 anos atrás e conta o drama da filha do Dr. Robert que fazia tratamento para fobia social (transtorno ansioso social). Norma tinha problemas emocionais que foram deflagrados depois da morte da mãe e para distraí-la, o cirurgião leva a filha numa festa, onde ela é estuprada durante o evento. Depois disso, ela é internada numa clínica, mas ela acaba se suicidando, ao pular de uma janela do hospital. O Dr. Ledgard resolve capturar este homem que abusou sexualmente de sua filha e culpa-o pela sua morte trágica.

VICENTE E VERA: O VAZIO DO “EU”

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Vicente (Jan Cornet)

O algoz de Norma será prisioneiro e não imagina o seu futuro. O cirurgião transforma Vicente em uma mulher, como objeto de análise científica, dermatológica e ginecológica. No seu corpo o médico realiza a cirurgia de vaginoplastia, que é uma cirurgia que se configura na reforma do tecido do pênis, para construir uma vagina.

 

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Vicente (Jan Cornet)

Durante a cirurgia, os cortes são realizados milimetricamente, para dividir o corpo de Vicente em partes. As cenas do diretor são filmadas de maneira seca, sem sangue. Aliás, não existe nenhum sensacionalismo nestas cenas, sendo que a sala impressiona pela limpeza e os cuidados médicos, de higiene e que são realizadas antes da cirurgia que reflete no ambiente, como de hospital.

Com muita sutileza, o diretor demonstra as cenas em que Vicente sofre pela experiência da troca de sexo. Depois ele fica confinado durante 06 anos num espaço, que na verdade representa o seu quarto. O espaço é grande, mas está vazio, como o seu “eu” interior. Ele sente-se como se fosse uma casa vazia, à espera do novo inquilino. Seu corpo vai se adaptando à nova realidade e está preso a uma malha, que imita a cor da pele.

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Vera (Elena Anaya)

Aos poucos, Vicente se transforma em Vera e surge uma máscara de mulher, com traços suaves, um rosto quase infantil. Os seus pedidos são feitos através de uma portinhola na parede, que se abre com a comida, quando é solicitada dentro do seu cárcere.

 

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Vera e Marília (Marisa Paredes)

 

A empregada Marília (Marisa Paredes) vigia Vera constantemente, através de monitores espalhados pela casa.

De repente, surge Zeca, o filho da empregada que está fantasiado de tigre e que entra na mansão pedindo o auxílio da mãe para esconder-se da polícia.

Quando ele vê Vera, Zeca confunde-a com a ex-mulher do Dr. Ledgard, considerando a semelhança física e comete o estupro em relação à moça. Durante o ato, ela tenta se defender de toda aquela sordidez e luta contra o agressor, mas não consegue. O seu corpo sofre mais uma vez, outro ataque, com tamanha brutalidade, onde o terror é como uma figura de um anjo negro, que a acompanha constantemente naquele cativeiro.

Zeca pode ser interpretado como aquele sujeito que permite viver o seu lado animal e voraz. Ele comete o estupro grotesco apenas para obter simbolicamente, aquilo que Robert possui, que é Vera.

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Vera e Zeca (Roberto Álamo)

 

A ação da violência cometida por ele será causada pela inveja e não pelo desejo em si. Entre este homem e Robert existe uma ligação muito forte que somente no final do filme é revelado.

 

O CORPO MODERNO E A ILUSÃO DA APROPRIAÇÃO DE SI

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Vera

 

Para Platão o corpo é uma caverna escura que aprisiona a alma, a visão sensível deve ser superada pela visão intelectual, que exige o aprendizado da arte dialética, da filosofia. (Eco, 2010, p. 41/50)

Para Rodrigues, no imaginário fundado pelo capitalismo, cada ser torna-se proprietário privado de si mesmo e de sua biografia decidindo seu destino, fazendo ou desfazendo sua vida como bem entender: “Claro que essas crenças configuram uma fantástica ilusão”. Segundo o autor, não podemos esquecer que é exatamente sobre essa ilusão de propriedade de si, de posse do próprio corpo e da própria vida que o capitalismo se funda. (...) O desejo de uma vida eterna é concebido ao espírito, que será substituído pela aspiração de uma vida eterna à matéria; com a eternidade se concretizando aqui mesmo, na Terra. Investe-se nas técnicas contemporâneas de prolongamento da vida, ressaltam-se os delírios de imortalidade contidos nos procedimentos de congelamento dos corpos, ilustram-se o limite extremo do individualismo e do culto à matéria. Assim como há a história da propriedade dos bens de produção, passa a existir uma história da apropriação privada do eu. (Rodrigues, 1999, p.127).

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Vera

Dentro desta perspectiva, veremos que a beleza de Vera é apenas um reflexo no espelho, como o quadro de Velasquez e sua Vênus, dando às costas ao fruidor da obra.

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Vênus -Velasquez

A beleza de Vera é artificial sendo que o seu corpo foi usurpado pela violência, portanto, um corpo separado de si mesmo. O corpo dá o contorno a uma individualidade que nos separa dos outros e até de mim mesmo.

 

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Dr. Ledgard (Antonio Banderas)

 

O Dr. Ledgard ao realizar a sua cirurgia em Vicente,  ele o reduz apenas ao fisiológico, esquecendo-se da mente e porque não, também do psicológico. Mas, como o médico vive entre as fronteiras da lucidez e da loucura, estes aspectos não são levados em conta. Os códigos morais e sociais são banidos em detrimento do próprio desejo para aplacar a dor, o sofrimento da perda da esposa e da filha.

O cirurgião projeta em Vera o amor perdido, que era a sua esposa, em consequência da semelhança física com a falecida.

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Vera (Elena Anaya)

A razão humana tem o poder de desencarnar qualquer objeto cognitivo para reduzi-lo, sob a forma conceito, a domínio próprio (...), reduz as coisas, as pessoas a objetos manipuláveis, desfrutáveis, modificáveis? (Eco, 2010, p. 269)

 

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Herman Braun - Vega

Neste filme, a crueldade humana é o meio para alcançar o prazer da vingança, único fim e desejo do cirurgião. Enquanto que, Vera vê na sua mutilação um castigo imposto pelo médico, do qual ela não sente nenhum arrependimento. E a partir da nova constituição corporal terá que buscar novas referências que fomentam na construção de um “novo eu”.

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Vera e Dr. Ledgard

A primeira frase do cirurgião no filme é “o rosto nos identifica” e inicia a sua palestra, junto ao meio científico.

Vale lembrar que através da imagem corporal vai-se criando o mecanismo de identidade pessoal. A imagem que a pessoa tem de si mesmo é matéria constante de modificações, que nasce, cresce, se excita, emagrece, engorda, cria pelos, etc.

Tanto nos distingue dos outros animais, como também sinaliza as nossas limitações genéticas. Além disso, existem as marcas psíquicas, a memória, os sonhos, as fantasias, etc.

Não somos apenas o fisiológico, porque possuímos também o psicológico que faz parte de toda a nossa “máquina”. Mas, o homem, ou melhor, o seu corpo vive num meio ambiente. E o nosso corpo foi trespassado por tantas mudanças culturais originadas em momentos recentes tais como: o Woodstok, a contracultura, os movimentos da juventude como nos anos 60 e sem contar com as guerras e a invenção da pílula e a ascensão feminina.

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Existência e experiências no corpo

 

Também não aceitamos mais as doenças da velhice e implantamos um culto ao velho, quando inventamos a 3ª idade.

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As três idades da mulher e a morte  (1510) Hans Baldung-Grien

Os personagens apresentados por Almodóvar neste filme carecem de uma nova identidade ou se fosse possível, nascer de novo. Eles vivem à distância de si mesmos e do outro, entre a tensão de ser e do fazer. Então vêm o isolamento, como uma resposta à dissolução da própria solidez de ser, de cada um.

O caso de Vera é mais complexo considerando que ela foi mutilada e marcada pela incerteza, porque o seu “eu” está separado de si mesmo, de sua identidade. Pois o corpo é que nos permite relacionar com o mundo e com nós mesmos. No seu corpo foi engendrado outro sexo, alterando as próprias formas corporais, causando uma dificuldade de uma visão simbólica dela mesma, ao retirar de seu corpo o rigor do funcionamento orgânico e extirpando a sua imagem corporal, que deve ser preservado por ser o reduto da intimidade e da dor.

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Vera

Almodóvar nos surpreende com este filme ao mostrar como é possível o rosto sofrer uma transformação, como se esta parte do nosso corpo fosse algo inacabado, provisório. Ele levanta a questão da identidade e também a pergunta, de como funciona o nosso rosto e nosso corpo, que representa o nosso “eu social”, no meio do “não acabado”?

Quanto à nossa pele não define apenas a nossa aparência, mas também nossa essência, aquilo que somos, como um todo.

O filme nos transmite a ideia de que o tempo não é mais sequencial, com o passado, presente e futuro, considerando as inovações tecnológicas e científicas, que o corpo se apresenta conforme o inato, de ordem da natureza e o adquirido, ou seja, o corpo com as suas transformações, conforme o desejo do indivíduo. O corpo não é mais imutável, com as cirurgias plásticas e a introdução de novas técnicas cirúrgicas, novas formas corporais podem surgir, o corpo pode estar em constante mutação.

Mas, a pergunta que não quer calar é como fica o estado psicológico do indivíduo que é submetido às transformações corporais que alteram a sua identidade e que é composta não apenas do físico, mas também do psíquico?

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Rochedos em Rüge (1818) - Caspar David Friedrich

 

As lembranças, os pensamentos, os afetos e desafetos, o mundo submetido que plasma nossas marcas corporais, como fica a nossa mente, sendo o corpo o receptáculo da subjetividade que nos invade todos os dias?

Talvez o diretor queira nos mostrar apenas a verdadeira natureza humana, como violenta e brutal e são personificados na figura de Zeca e Robert Ledgard. O médico simboliza o lobo que veste a pele do cordeiro.

Ficha técnica do filme:

Título: A pele que habito

Roteiro/direção: Pedro Almodóvar

País: Espanha

Ano: 2011

Elenco: Antonio Banderas, Elena Anaya, Blanca Suarez, Jan Cornet, Marisa Paredes e Roberto Álamo.

Referência bibliográfica:

1) ECO, Umberto. História da beleza. Rio de Janeiro. Ed. Record, 2010.

2) LIPOVETSKY, Gilles. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009.

3) RODRIGUES, José C. O corpo na história. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.

Comentários

Luciene disse…
O filme "A Pele Que Habita", de Almódovar, nos inquieta, pois não dá para se contentar em apenas vê-lo, a busca por mais informações se faz necessária. Seja no começo ou no meio do filme, novas perguntas surgem e a sede de buscar respostas nos incomoda e fica impossível ignorar tantos questionamentos. Nessa ansiosa busca, acabei encontrando essa análise tão bem construída e, ao mesmo tempo, tão provocadora e mista de tantos elementos que povoam a mente humana e que lhe dão a oportunidade de diversas direções: cultural, psicológica, filosófica, social, emocional e, por que não acrescentar aquilo que muitas vezes nos limita ou nos torna estranhos, a carne?

No fim, o que eu quis dizer foi:

Amei ler tudo isso que você escreveu!

Abraços.

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