Análise do filme "FALE COM ELA" E A AÇÃO DO SILÊNCIO


LYDIA (ROSARIO FLORES) E MARCO (DARÍO GRANDINETTI)


O filme FALE COM ELA, com roteiro e direção de Pedro Almodóvar, foi produzido em 2002. Os principais atores e seus personagens são Javier Câmara, como Benigno Martin, Darío Grandinetti como Marco, Leonor Watling como Alícia Roncero, Rosario Flores como Lydia e Geraldine Chaplin como Katerina Bilova.
Trata-se de uma tragédia que une dois homens que se desconheciam até então e precisam cuidar de duas mulheres em coma num hospital.
Benigno Martin sofreu uma dolorosa perda, a mãe. Ele cuidou dela desde criança e durante a adolescência. Seu pai deixara a família para construir outra, na Suécia. Benigno não o vê há muito tempo e, após a morte da mãe, decide aproximar-se de Alícia, uma bailarina que estuda numa escola situada em frente à janela de seu apartamento.



BENIGNO MARTIN (JAVIER CÁMARA)

Alícia dedica-se ao balé, vai ao cinema e nos últimos tempos mostra-se apaixonada pelos filmes mudos. Não há qualquer indício no filme que a moça namore alguém. Ela mora com o pai, que é psiquiatra e perdeu a mãe há algum tempo.
Num dia de chuva, ela sofre um grave acidente ao sair da academia de balé. Este acidente ocorre após seu segundo encontro com Benigno. O acidente não é revelado no filme, mas ela é atropelada e Alícia é internada em estado de coma.
ALÍCIA RONCERO (LEONOR WATLING)

Benigno volta a vê-la no hospital onde trabalha como enfermeiro.
O Dr. Roncero, o pai de Alícia, depois de certa hesitação, decide contratar Benigno para cuidar exclusivamente da sua filha.
Um dia, quando Roncero chega ao hospital, vê Benigno massageando sua filha. Fica chocado e interroga-o quanto à sua orientação sexual, mas logo se tranqüiliza, porque Benigno mente dizendo que se interessa só por homens.
É o segundo encontro deles, já que o enfermeiro o havia procurado para uma consulta, usando um pretexto para que pudesse entrar no consultório e na casa da família Roncero.
Depois da consulta ele entra no quarto de Alícia e furta uma presilha de cabelo, sem que ninguém perceba.
Após alguns anos de internação, as enfermeiras descobrem que Alícia está grávida e responsabilizam Benigno que é demitido do hospital.
O enfermeiro mantinha relações sexuais com a moça em coma, enquanto permanecia em plantão noturno.
Benigno é preso e a única coisa que lhe interessa é saber se o filho que Alícia esperava já nasceu.
O jornalista Marco informa-lhe que o filho morreu, mas não disse se a moça sobrevivera.
O enfermeiro é julgado e condenado. Em conseqüência disso, ele se suicida na prisão, porque não quer viver num mundo sem Alicia, ele deseja entrar em coma para reencontrá-la.

Depois de ingerir muitos comprimidos ele acaba falecendo, como um “Romeu e Julieta” da atualidade.
Alícia dá a luz a um menino e acorda do coma. Mas, o bebê morre. Depois de sair do hospital, ela retoma suas aulas de balé com a ajuda da sua professora, que a adora como se fosse sua filha.
A outra narrativa que segue paralelamente no filme, é a de Marco e Lydia.
Marco é um jornalista e conhece Lydia ao vê-la num programa de entrevistas, na televisão. Ela é uma moça muito bonita e bastante masculinizada.
A entrevistadora insiste em falar da sua relação com o toureiro El Niño de Sevilla, que a teria abandonado, após tê-la usado para tornar-se famoso. Recusando-se a falar do romance, ela sai de cena apesar da insistência da apresentadora de tv.

Marco, depois de assistir ao programa, telefona imediatamente para seu editor e propõe entrevistá-la. Após uma negativa inicial, Lydia descobre que o jornalista também está interessado em escrever uma matéria sobre seu romance mal sucedido com o toureiro. Mas depois, ela muda de idéia, quando ele mata uma cobra que aparece na sua casa. Passa então a admirá-lo e ambos iniciam um namoro.
O pai de Lydia fora banderillero (auxiliar de toureiro) e seu sonho era ter um filho toureiro e Lydia o realizara. Ele também morrera há um ano e era a pessoa que mais havia apoiado a sua filha na sua vida profissional.
A toureira assume uma profissão totalmente masculina, evidenciando a ocorrência de uma inversão dos papéis clássicos.
Lydia e Marco tinham algo em comum, eles haviam perdido as pessoas que amavam, ela o pai e ele a mãe.
Angela, ex-mulher de Marco, havia se separado dele, deixado as drogas e voltado para a casa dos pais.
Lydia ainda amava El Niño, o toureiro, e estava disposta a revelar a Marco o seu desejo de reconciliação com o ex-marido.
Mas, como ela sofreu um acidente numa tourada e ficou internada em coma, no mesmo hospital em que se encontrava Alicia, não pode fazer tal revelação.
Marco só percebe a infidelidade de Lydia quando surpreende El Niño segurando a mão da sua namorada, no hospital. Depois disso, Marco decide abandoná-la, cedendo o seu lugar ao ex-marido de Lydia.



LYDIA (ROSARIO FLORES)

A primeira pessoa para quem Marco conta sobre sua desilusão é Alícia. Esta é a primeira vez que ele fala com a paciente em coma.
Nesse momento, pela primeira vez em anos, ela abre os olhos tão repentinamente, que Marco não sabe se foi uma percepção decorrente da sua imaginação ou se o fato aconteceu de verdade.
Perante Lydia, Marco permanecera calado, apesar da insistência de Benigno, que acabara de conhecê-lo no hospital.
Daí eles tornam-se grandes amigos, por força das circunstâncias. Entretanto, ambos têm atitudes opostas diante do coma de suas amadas. Enquanto Marco mal consegue olhar para Lydia, Benigno cuida de Alícia como se ela estivesse acordada. E notando a incapacidade de Marco para lidar com a situação, Benigno lhe dá um conselho precioso: “Fale com ela”.
Pessoas como Lydia e Alícia podem recobrar a consciência após algumas horas, dias, anos ou jamais. À medida que passa o tempo sem melhoras visíveis, acirra-se o confronto entre o ceticismo e a fé na recuperação.
A desconexão patológica entre o corpo e a mente decorrente de um trauma externo, se manifesta em gradações diferentes, conforme a profundidade do dano. O coma se caracteriza comportamentalmente, pela ausência de respostas sensoriais e controle motor voluntário e evolui para o estado vegetativo quando ocorre a abertura dos olhos. A passagem para o estado de consciência mínima é marcada por uma resposta a comandos simples, uma verbalização inteligível e a fixação do olhar.
Alguns estudos de cientistas confirmam três conceitos importantes, o primeiro, que o cérebro continua a processar informações de modo seletivo, mesmo na ausência de reatividade comportamental. O segundo, é a possibilidade de utilizar o imageamento cerebral, para acompanhar no dia-a-dia, os efeitos internos do trabalho de recuperação do paciente, guiando o curso terapêutico. O terceiro, é o uso da emoção na interação com o paciente auxiliando o processo de recuperação.
Mas, se para o senso comum, o fim da vida corresponde à parada da respiração e do batimento cardíaco, o mesmo não acontece para a medicina, que há quase 40 anos atribui à essência da vitalidade do ser humano ao cérebro.
Para o senso comum, essa mudança de foco com a vida passando a ser percebida pelo funcionamento do cérebro e não mais pelos batimentos do coração, faz com que as emoções sejam vivenciadas no cérebro. Então, para a medicina a morte cerebral é equivalente à morte tradicional.
Neste filme, Almodóvar nos mostra que os sentimentos, como o amor e a paixão, podem transformar as pessoas diante da vida e dos acontecimentos.
Caetano Veloso, surge cantando a música La Paloma, que narra uma paixão que desafia a morte, suplanta-a, numa alusão do amor de Benigno por Alícia.
O diretor espanhol neste filme também utiliza da tauromaquia ou da arte de tourear, do cinema mudo e do balé, consideradas artes basicamente gestuais para que as personagens possam expressar seus desejos indiretamente, não pela fala, mas pelo comportamento, pela ação do silêncio, pois uma baila e a outra toureia.
Para o psicanalista Jorge Forbes, em Psicanálise, quando falamos ou calamos, existe algo além do silêncio: o silêncio das pulsões de Freud. As pulsões não falam, mas existem e se manifestam através do corpo. É o que ocorre com as personagens que expressam suas pulsões através da arte, dançando num palco ou bailando na arena, numa coreografia marcada pelos sentidos e pulsações.

A relação de Rosário com o pai moldou toda a sua vida, que foi articulada em prol do desejo paterno, pois o pai desejava que a filha fosse uma toureira. E para corresponder ao seu desejo, a sua voz teve que ser confiscada pelo pai, representando a força dessa relação. Assim ocorreu a sua escolha profissional, para assemelhar-se com a figura paterna.
Outra conseqüência dessa relação forte com o pai foi que Rosário escolheu ficar com o toureiro e não com o jornalista, considerando a semelhança que El Niño tinha com o genitor. E este fato pode sinalizar o perigo que a filha corre, quando permanece tão próxima ao desejo paterno, ignorando sua voz interior e permanecendo no silêncio.
Quando adulta, Rosário repete essa mesma conduta, prejudicando seus relacionamentos amorosos, na medida em que deseja continuar sendo a garotinha desprotegida. Assim, ela não precisa se responsabilizar por sua própria vida e sua independência.
Inconscientemente, também procura relacionamentos com parceiros que pudessem desenvolver o mesmo tipo de relacionamento que teve com seu pai quando criança. Suas maneiras e sua expressão indicam que ela também é uma sofredora. Da mesma forma que é atraída pelos sofredores, estes também são atraídos por ela, como Marco e El Niño.
Cada um esperava que o outro pudesse aliviar seu próprio sofrimento, mas cada um só trazia mais sofrimento para o outro. Nenhum deles tinha alegria para oferecer.
Uma criança entre três e seis anos de idade depende excessivamente do amor e da aprovação dos pais. E a arma mais eficiente que um pai ou mãe têm para controlar seu filho é a retirada do amor ou a ameaça disso.

E o pai de Benigno retirou seu amor, quando construiu outra família e foi morar em outro país.
A hipótese é de que a dor do menino foi muito grande, assim ele resolveu “brincar” de que nada aconteceu, suprimindo a dor e dedicando-se inteiramente à sua mãe, tornando-se um filho perfeito, para também não perder o amor materno.
A sua mãe era um pouco “preguiçosa” conforme suas palavras, assim Benigno tinha que cuidar dela porque era doente. Em conseqüência disso, ele perdeu todo o seu tempo de adolescência, sendo seu enfermeiro particular, dia e noite, sempre à sua disposição.
Inconscientemente, Benigno fazia o jogo dela, ele cuidando e ela aceitando. E esta era a forma da mãe exercer o controle sobre ele, oferecendo um amor sufocante que impediu que o menino crescesse emocionalmente.

Só depois da morte da mãe que Benigno pode dedicar-se a outra mulher, Alícia. Mas aí, ele vai repetir o mesmo tipo de relação que tinha com sua mãe, refletindo nos cuidados excessivos com a saúde e a dedicação para Alicia, quando a moça estava internada no hospital.
Benigno não sabia demonstrar o seu amor de outra forma, porque não aprendeu, considerando que ele não teve a oportunidade de viver o amor de um homem em relação a uma mulher.
Paradoxalmente, o contato com Alícia o liberta do amor edípico e sufocante, indo contra todas as probabilidades científicas, pois ele acredita que um dia ela acordará, como um prêmio por toda sua dedicação e seu amor. Fala muito com ela, relatando todos os filmes que assiste no cinema. Comunica-se o tempo todo com Alícia, o que pode ter provocado a sua cura, conforme as palavras de Marco.
“A mente da mulher é um mistério, ainda mais neste estado”, é uma frase proferida por Benigno referindo-se a Alícia, adormecida.
Durante o filme, a moça parece estar sempre adormecida, ausente de si mesma e do mundo ao seu redor. E somente o amor de Benigno foi capaz de acordá-la para a vida.
O título FALE COM ELA pode ser sugestivo, na medida em que metaforiza o “fale com ela” que está em coma, mas também pode ser um “fale com ela e deixe ela falar”, se expressar, mostrar quem ela é verdadeiramente.
E para Alícia a dança é a sua forma de comunicar-se com o mundo, porque lhe faltam as palavras. Faltando-lhe as palavras, conseqüentemente, a problemática da comunicação entre os sexos é muito grande neste filme e transparece na vida das personagens.

E o amor acontece no meio de todos estes conflitos mal resolvidos. No entanto, o caminhar do tempo pode trazer mais de um auxílio para a aprendizagem das pessoas para viver o amor, segundo o poeta Rainer Maria Rilke. O poeta diz que:
“Esta aprendizagem de viver o amor consiste numa boa ocasião para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo em si mesmo, por causa de um outro ser...”


BENIGNO E ALÍCIA – MARCO E LYDIA


BIBLIOGRAFIA

1) FORBES, Jorge. Você Quer o Que deseja? São Paulo: Editora Nova Cultural, 2003
2) GOLDGRUB, Franklin. A Metáfora Opaca – cinema, mito, sonho e interpretação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
3) MENEZES, José Euclimar Xavier de. Fábrica de Deuses – a teoria freudiana da cultura. São Paulo: Unimarco Editora, 2000.
4) Revista Viver Mente & Cérebro – fevereiro de 2006.
5) RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta – a canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke”. São Paulo: Globo, 2001.

Fotos: www.sonyclassics.com/talktoler

Comentários

anacardoso disse…
Uma das melhores analises que li sobre este filme... parabéns
Anônimo disse…
Boa análise. Gostei muito. Continue o bom trabalho!

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