Análise do filme KILL BILL – Vol. 1 e 2, numa ótica junguiana

A Noiva/Uma Thurman


O filme Kill Bill foi produzido nos Estados Unidos em 2003, com roteiro e direção de Quentin Tarantino e apresenta os principais atores: Uma Thurman (a Noiva/Beatrix); Daryl Hannah (Elle Driver); Lucy Liu (Boca de algodão); David Carradine (Bill); Gordon Liu (Pai Mei); e Michael Madsen (Budd).

O Volume 1 narra a história de uma perigosa assassina que trabalha em um grupo de extermínio, chamado as “Víboras Mortais”, liderados por Bill, seu mestre e namorado.

Durante uma missão, ela descobre que está grávida e desiste de cumprir a tarefa. Percebe que para poder criar seu filho deve se desligar do grupo e fugir de Bill, porque se ele souber da paternidade irá desejar a criança só para si.

A Noiva foge para o Texas e lá arruma um emprego numa loja de discos e acaba se apaixonando pelo dono da loja. Eles decidem se casar, mas no dia do ensaio do casamento, na Igreja, ela recebe a visita de Bill e numa conversa nada agradável, ele atira contra sua cabeça, dominado pela fúria, por ter sido abandonado.

Bill descobre o paradeiro dela e envia para o Texas o seu grupo de extermínio com o objetivo de executá-la.

O grupo de extermínio é composto por vilões que roubam e matam, profissional e exclusivamente, por dinheiro. Mas, neste caso, foi apenas por pura vingança, a carnificina na Igreja.

Nesta cena, a identidade do assassino não é revelada, mas surge uma evidência quando ele limpa o rosto da vítima, com um lenço branco onde aparecem as letras K e B.

Com seu rosto oculto, a câmera mostra apenas suas mãos, e uma delas segura uma espada, enquanto ouvimos a voz de Bill em off, sendo que esta técnica é muito comum nos filmes da máfia italiana.

Depois da matança, a Noiva é encontrada pelo delegado, no chão, agonizando. Seus amigos, inclusive o seu futuro esposo, o pastor da igreja e sua esposa, bem como, o homem que ensaiava as músicas para a realização do casamento foram executados.

A Noiva é levada para o hospital e fica em coma, durante quatro anos. Lá, recebe a visita de Elle Driver, que agora é namorada de Bill e que tenta “terminar o serviço”, mas é impedida pelo líder do grupo.

A Noiva ao acordar do coma ela foge do hospital e parte para a vingança contra todos.

Depois de quatro anos, a Noiva lembra-se da cena na Igreja e depara-se com o seu ventre vazio, sem o seu bebê.

Após assassinar a primeira integrante, a Noiva parte para o Japão, onde procura por Boca de Algodão, a sua segunda vítima.

Num restaurante, ela trava uma batalha com os 44 capangas da líder da máfia japonesa, lutando com sua espada e muita coragem.

A Noiva ainda tem forças para duelar no jardim japonês com a ex-integrante das Víboras Mortais. E nesta luta, Boca de Algodão pede-lhe o perdão. Seu pedido é concedido, mas depois a sua cabeça é decepada, que cai sobre o gelo e o sangue escorre manchando o seu quimono branco.


Boca de Algodão

No Volume 2, o diretor completa a saga de vingança iniciada pela Noiva em Kill Bill -Vol.1. A Noiva resolve as suas questões na ponta de sua espada e tenta buscar o seu aperfeiçoamento físico, aprendendo as lutas marciais com Pai Mei, para derrotar os inimigos, numa incansável luta.

A Noiva está muito viva e preparada para o combate final; defende-se mais do que nunca e sem se colocar em posição de vítima.

Apesar de estar dominada pelo sentimento negativo da vingança, ela revela toda a sua coragem e determinação, mesmo com suas características femininas extirpadas junto com a perda de seu útero, que simbolizam a sua fertilidade e feminilidade.

Seu objetivo de vida será somente vingar-se das pessoas que levaram o seu bebê e acabaram com o seu casamento. Movida pelo sentimento de vingança e depois do treinamento angustiante com Pai Mei, ela vai à procura do esquadrão de assassinos.

Com dois nomes riscados de sua lista de morte, a Noiva está de volta, com muita sede de vingança e os próximos da lista são Budd e Elle. Mas sua espada ainda pede o sangue de Bill, seu antigo mestre, ex-namorado e mandante de sua execução.

Depois de cumprida a missão na capela, em Two Pines/Texas, os integrantes do grupo procuram a “carreira solo”.

Budd, que é irmão de Bill, vai trabalhar como leão-de-chácara em uma boate de strip-tease, no meio do deserto, no meio do nada.

E neste novo encontro com a Noiva, ele tortura e enterra a moça viva, a mando de Bill.

A Noiva enterrada dentro de um caixão utiliza uma técnica que aprendeu com Pai Mei e consegue deixar as profundezas da terra alçando-se acima do solo. O Hades permite sua saída e ela vagueia pela estrada, feito um fantasma.

Elle Driver descobre que Budd ficou com a espada da Noiva e obviamente tenta comprá-la, utilizando um artifício muito perigoso. Ela entrega a mala de dinheiro ao cunhado e ele, ao abrir a mala, é picado várias vezes por uma serpente. Asfixiado pelo veneno, Budd se debate até a morte.

Neste episódio, surge a Noiva, em busca de sua espada e encontra Elle Driver na casa de Budd. As duas lutam e a Noiva arranca o olho que sobrou de Elle e deixa a moça cega, à mercê da cobra que acabara com a vida de Budd.

Elle Driver tornara-se amante de Bill e cúmplice de seus assassinatos. Ela sempre invejou a Noiva e tentou imitá-la quando rouba seu namorado e, também, quando procura Pai Mei, para obter o mesmo treinamento físico.

Porém, não consegue conviver com a tirania de Pai Mei e a dureza de seu treinamento, então, envenena a comida do mestre, levando-o à morte.


Elle Driver/Daryl Hannah


Em sua constante batalha, a Noiva vai à procura de Bill e acaba se encontrando com o pai dele, que mora no México e que sobrevive do aliciamento de jovens para a prostituição.

Ele conta que levava Bill ao cinema e o pequenino excitava-se quando via as atrizes loiras na tela, justificando o porquê da atração de seu filho por Beatrix.

Ela apenas sorri e pergunta onde está Bill e o homem indica o paradeiro do filho para a Noiva.

Bill quando se depara com o sumiço de sua namorada e integrante do grupo e não descansa enquanto não descobrir seu paradeiro. Agora, seu objetivo é saber por que ela o deixou e depois se vingar. Na verdade, ele julga que a moça merece todos os castigos possíveis por tê-lo abandonado.

E enquanto ela esteve internada no hospital e em coma, Bill roubou o seu bebê, criando e educando a criança até aos 4 anos de idade.


Bill/David Carradine

Um dia, inesperadamente, ele recebe a visita de Beatrix em sua casa e ela finalmente encontra sua filha, que logo a reconhece e exclama: “Você demorou para acordar mamãe! Papai me contou”.

Mesmo com este encontro emocionado com a filha, Beatrix não perdoa Bill, matando-o no jardim de sua casa. Depois foge com a filha e vai cuidar da sua vida.


AS MULHERES E OS MITOS EM KILL BILL


As mulheres de Kill Bill


Após o coma que simboliza a sua morte e ressurreição, a Noiva possui uma segunda chance para começar tudo de novo, indo atrás de suas metas de vida, ou seja, o casamento e a maternidade; mas ela decide seguir outro caminho, o da vingança, carregando consigo a fúria, a violência, percorrendo uma estrada escura, sem luz, sem sinalização, sem direção.

Para entendermos melhor o comportamento agressivo da Noiva, potencializado pelo sentimento de vingança, vamos recorrer aos mitos.

Segundo Menelaos Stephanides, estudioso dos mitos gregos, no passado distante o homem era como uma criança que adorava contos de fadas. Quase impotente diante das forças da natureza, levava uma vida de desconforto e dificuldades inimagináveis.

A seu redor, forças aterradoras frequentemente provocavam desastres, mas também o fascinavam com sua grandeza e seu poder, arrebatando o seu coração de amor pela vida. Num esforço para torná-la compreensível, ele buscou as causas por trás dos horrores e maravilhas com que se deparava. Mas seu conhecimento era limitado, assim, frustrava-se e buscava encontrar a explicação verdadeira para os fenômenos em sua imaginação.

Uma imaginação fértil, que tecia histórias incríveis, com muita beleza e sentimento, mas com um traço de tristeza espelhando a sua existência árdua. Assim, nasceram os mitos e conseqüentemente, a Mitologia. (Stephanides, 2001, p.106).

Os mitos são cheios de eventos fantásticos e parecem contos de fadas. Mas não são. Por trás deles, invariavelmente, há fatos reais; e podemos perguntar de onde vieram estas lendas?

A Mitologia pode nos ensinar o significado da vida através das histórias vividas pelos seus heróis e deuses. Crê-se que estes podem nos servir como metáforas para a nossa própria vida, se conseguirmos ter acesso a eles por meio do nosso inconsciente coletivo e dos nossos sonhos, segundo Stephanides.

O inconsciente coletivo é composto pelo nosso passado mitológico, conforme define Carl G. Jung:

Consiste do passado mitológico e simbólico comum a toda a humanidade. O inconsciente coletivo é um segundo sistema psíquico da pessoa. Portanto, temos o inconsciente pessoal, particular e individual, com conteúdos esquecidos ou reprimidos e também composto pelos complexos e instintos. (1995, p 15)

O contato com deuses ou deusas pode ajudar as mulheres a fazer as suas escolhas e determinar o destino, mesmo na contemporaneidade.

Para Jung, deusa é a descrição psicológica de um tipo complexo de personalidade feminina que reconhecemos intuitivamente em nós, nas mulheres à nossa volta e também nas imagens e características que estão em toda parte, em nossa cultura.

Uma deusa é um arquétipo feminino que pode surgir no contexto de uma narrativa e/ou epopéia mitológica ou sonho. E em vez de sonhar com uma rainha como nos contos de fadas, podemos também sonhar com uma deusa, como Diana, a Caçadora.

Mas, em uma mesma mulher, podem ser encontradas várias deusas e conhecê-las significa ter a chave para a compreensão de nós mesmas e das relações que estabelecemos com os outros.

O que precisamos entender é que várias das características atribuídas às deusas em diversas combinações estão por trás do comportamento e da configuração psicológica de toda mulher.

O autor Adam McLean define o conceito de deusa:

A deusa é um arquétipo eterno da psique humana. Desde os primórdios da nossa civilização, ela se revela a nós em desenhos rupestres e em esculturas primitivas, nas grandes mitologias, manifestando-se na nossa cultura atual sob os mais diversos disfarces. Ela faz parte do tecido do nosso ser, com o qual toda a humanidade tem de se relacionar interiormente, se desejamos ter em nossas almas um equilíbrio de base. (1998, p.7)

Segundo o autor, no nosso interior podemos encontrar várias faces das deusas. O caráter tríplice da deusa é muito importante e não se trata de uma mera multiplicação por três, mas de uma manifestação sob três aspectos: a deusa se revela em três níveis, nos três domínios da humanidade, e explica:

Para encontrar a deusa tríplice na mitologia, temos de voltar ao substrato do mito. Bem antes da ascendência do mito de Cristo, os mitos primais da deusa foram esmagados sob o peso de gerações de deuses masculinos que usurparam o seu lugar no esquema das coisas, conquistando os seus centros sagrados e tomando para si mesmos algumas facetas dos seus atributos. O deus celeste Zeus foi levado para a Grécia por uma onda migratória. (1998, p.14)

Conforme McLean, o ser humano também é tríplice: corpo, alma e espírito. E as três faces da deusa costumam ser vistas como correspondentes a esses planos do microcosmo do ser humano. E o macrocosmo também é tríplice:

Consiste no céu, na superfície da terra/mar e nas profundezas da terra (o mundo inferior ctônico). E algumas das deusas tríplices exibem facetas que as ligam com esses três reinos. Os aspectos mais importantes da deusa tríplice é: virgem/mãe e anciã. São representações com as quais as pessoas têm mais facilidade de identificar-se, visto que correspondem às três fases da vida da mulher. Ela também nos remete ao ciclo das fases lunares e ao ciclo menstrual, à ovulação e à possível gravidez. São processos que correspondem às facetas de jovem/mãe/velha. (1998, p.17- 8)

Nas profundezas da nossa alma não somos exclusivamente nem masculinos nem femininos, mas temos uma natureza para a qual concorrem ambas as facetas. O autor explica: “Negar, exaltar ou inflar uma delas leva tanto à distorção como ao erro, bem como a perda da oportunidade de vivenciar a totalidade do nosso ser” (1998, p.24).

Portanto, conhecer-se a si mesma mais plenamente como mulher é conhecer por quais deusas se é primordialmente governada. É estar ciente de como cada uma delas influencia as diversas fases e os diversos pontos de mutação de nossa vida.

Os homens, também, são influenciados pelas deusas, pois estas quase sempre, espelham as energias femininas na psique masculina, embora os homens vivenciem esta experiência psíquica como exteriores a si próprios, ou seja, como mulheres pelas quais são atraídos (namoradas, esposas ou amantes), ou pelas quais se sentem fortemente provocados, como, por exemplo, atrizes de televisão, cinema etc.

Após esta reflexão acerca dos conceitos da teoria junguiana sobre as deusas apresento a lenda da deusa Deméter, para estabelecer uma conexão com a personagem, a Noiva, de Kill Bill. – Vol. 1 e 2.



A lenda da deusa Deméter


A deusa Deméter

A história aqui contada é um resumo da lenda de Deméter, deusa das colheitas. Ela é uma verdadeira mãe-terra que gosta de estar grávida, de amamentar e de cuidar de crianças, e está envolvida com todos os aspectos do nascimento e com os ciclos reprodutivos da mulher. É a mãe de Perséfone, cujo pai é Zeus.

Conta a lenda que o grande Zeus sabia que Deméter amava as verdes planícies, os serenos rebanhos de animais e sobretudo os seres humanos. Então lhe deu a incumbência de alimentar a humanidade.

A deusa não só aceitou a tarefa como também, com muita disposição, se encarregou de cuidar dos campos e das colheitas para que a terra desse frutos e houvesse alimento para as pessoas e para os animais. Logo fez que os campos se tornassem verdes e as árvores dessem frutos. Os homens foram começando a saciar a fome e, aos poucos, a se multiplicar.

Naqueles tempos, os homens não sabiam cultivar a terra. Viviam como os animais selvagens, nos bosques, lutando contra as feras e a natureza rude. Moravam em cavernas ou em cabanas improvisadas e comiam frutos silvestres que colhiam das árvores, ou algum animal que conseguissem caçar. E eram obrigados a se mudar de um lugar para outro, pois quando os frutos se esgotavam no local em que estavam, mudavam-se para outra parte em busca de outros alimentos. Podia ocorrer, também, de lutarem entre si, cada um defendendo a sua porção de comida.

O coração da deusa ficava partido ao ver as pessoas tão sofridas. Pensou, algo precisava ser feito. Ela devia encontrar um outro modo de ajudá-las de maneira mais efetiva. E de repente, um dia, Deméter estava sentava numa rocha olhando pensativa a planície bela e tão verde, quando um súbito pensamento lhe passou pela cabeça. Era a solução para o problema que a atormentava por tanto tempo. Seu pensamento veio rápido como o vento, decidiu ensinar os homens a cultivar a terra e a plantar. Ficou muito feliz com sua ideia, vestiu-se como uma mulher comum e começou a ensinar os homens a trabalhar a terra; tudo era difícil, pois eles não a entendiam.

Muitas vezes ela escavou sozinha a terra, semeou, regou, remexeu, sempre explicando o que fazia. Mas o resultado não demorou, logo vieram as plantações e pouco a pouco todos começaram a trabalhar a terra. Pararam de perambular pelos bosques à cata de frutos. Também começaram a construir suas casas e logo se formaram as aldeias.

Mas a verdadeira felicidade é inatingível, tanto para os deuses quanto para os homens. Em um dia tudo pode estar bem e, no outro, a desgraça aparecer.

A deusa teve um pressentimento terrível e pensou: “algo de ruim vai acontecer”. De longe, ouviu o grito da sua filha única, chamada Perséfone. Era um grito terrível e desesperado, que começava além das montanhas e dos mares e chegava ao Olimpo: “Mãe, estão me raptando!”

Deméter não estava junto com a filha, que naquele dia brincava com as ninfas no campo de Nísia. Atraída pelo perfume e pela exuberância do narciso “de cem ramos”, Perséfone afasta-se das companheiras e debruça-se para colher um botão que floria na borda de um penhasco.

Nesse momento, a terra se abre e surge da fenda o deus da morte e do mundo subterrâneo, o Hades, que a carrega, apesar de seus gritos, em seu carro puxado por “imortais cavalos”, levando-a para o seu reino.

Perséfone grita pedindo a Zeus, seu pai, que a salve, sem supor que o rapto tinha sido tramado pelo próprio Zesus, com seu irmão, o senhor de Hades que vivia no reino dos mortos.

Do fundo de sua gruta, Hécate, a deusa das sombras e da tênue luz da lua, nada vê, mas ouve o grito de Perséfone. Distante, “através dos picos das montanhas e das profundezas do mar”, Deméter também o ouve.

E durante nove dias e nove noites, sem comer nem se lavar, carregando tochas, Deméter procura a sua filha, desesperadamente. Na aurora do décimo dia, Hécate vem ao seu encontro e diz à deusa inconsolável que sabia que sua filha tinha sido raptada, mas não sabia por quem.

Juntas, vão perguntar ao Sol, o deus Hélio, que tudo vê no seu curso pelo céu. O deus resplandecente conta que Perséfone tinha sido dada por Zeus a Hades, para ser sua esposa e rainha do reino dos mortos. E o deus volta para as alturas no seu carro de luz, deixando imersa em escuro e desespero a deusa Deméter. Desfigurada pela dor e vestida em andrajos, ela se dirige, então, para as cidades dos homens.

Uma tarde, tendo chegado ao reino do Elêusis, ela se senta à beira da Fonte das Donzelas, à sombra de uma oliveira. As filhas do rei de Elêusis vêm apanhar água e aproximam-se de Deméter. Quando esta lhes diz que busca trabalho como ama, as jovens levam-na a seus pais.

Coberta com escuro manto, a deusa entra no palácio onde a recebem com respeito. Ela recusa o vinho que lhe é oferecido, mas aceita uma bebida feita com cevada e água.

A rainha entrega-lhe seu filho recém-nascido e Deméter o recebe e começa a dar-lhe cuidados para que ele cresça como se fosse o filho de um deus, unta-o com ambrosia e à noite, secretamente, coloca-o sobre chamas para que ele se torne imortal.

Uma noite, a rainha insone deixa seu quarto e vai ver o filho entregue à ama. Surpreende-a segurando a criança sobre o fogo e solta um grito apavorado. Com isso, impede que o filho se torne imortal. E ondas de terrível ira atravessam a deusa que, dando-se a conhecer, repreende a mãe por ter privado o filho da imortalidade.

Depois de revelada a presença da deusa, os reis e o povo de Elêusis erigem-lhe magnífico templo. Para dentro dele Deméter se retira e, reclusa, entrega-se à saudade da filha. A dor cresce em seu peito, seu luto e desespero começam a transbordar trazendo destruição sobre a Terra.

Naquele ano terrível nenhuma semente brotou, a humanidade teria perecido pela fome e os deuses estariam para sempre privados das oferendas e sacrifícios dos homens, se Zeus não tivesse percebido isso e ponderado.

A deusa Íris é a primeira mensageira que vem implorar a Deméter que aceite o convite para vir ao Olimpo receber grandes honras e que devolva a fertilidade aos campos dos homens.

Deméter, inabalável em sua vingança, recusa-se a atender a Íris e a todos os deuses que vêm, um por um, suplicar que retire o castigo. Declara que nenhuma semente brotará enquanto não lhe for devolvida Perséfone.

Finalmente, Zeus envia seu mensageiro Hermes ao Hades para pedir ao senhor dos mortos que concorde em ceder a esposa à sua mãe.

Hades dá seu consentimento e Perséfone, exultante, prepara-se para partir. Na despedida, o marido pede-lhe que coma com ele alguns gomos de romã. Depois de compartilharem a fruta, Perséfone salta no carro dourado onde Hermes a espera, e puxados por cavalos de longas asas, atravessam os mares, os picos das montanhas, e chegam ao bosque perto do templo.

Mãe e filha correm em direção uma da outra e abraçam-se em uma alegria sem limites. Subitamente, Deméter suspeita de um embuste e pergunta à filha se tinha comido alguma coisa enquanto estava no mundo subterrâneo.

Perséfone lembra-se de ter partilhado a romã com o marido e sua mãe sabe então que só a terá de volta por dois terços de ano. Um terço ela terá que passar com Hades, no reino dos mortos. Por isso, durante uma terça parte do ano, tudo seca e morre na natureza. E todos os anos, quando Perséfone volta, tudo volta a crescer. Sua volta traz a primavera, sua mãe cobre a terra de flores.

Depois de um dia de muitos abraços e de contarem uma a outra tudo o que lhes tinha acontecido, na alegria de estar novamente juntas, Deméter chamou os governantes da cidade e os instruiu na celebração de um ritual.

Os Mistérios de Elêusis foram então fundados, para que cada ano se repetisse aquele encontro entre Deméter e Perséfone. Através da realização deste festival, eles exaltam a grande alegria de Deméter, o encontro da mãe com a filha. Em seguida, lançam-se cheios de disposição aos trabalhos com a terra, assim como lhes havia ensinado a sofrida deusa, a deusa da agricultura.

Então, as duas deusas partem, para grande alegria de Deméter, para o Olimpo e aí estão juntas, na companhia dos demais deuses.


A CONEXÃO DE DÉMETER COM A NOIVA


Bill e a Noiva


Segundo Martha Robles, Deméter gozava de uma posição especial no Olimpo: “Não por sua beleza ou inteligência, mas por representar a primavera, o que a transformara na padroeira das colheitas” (2006, p.61).

A deusa fora devorada ao nascer, por seu pai Cronos (deus do Tempo) e resgatada do seu ventre, por seu irmão Zeus e sua mãe Réia.

Deméter de sua relação incestuosa com Zeus teve uma filha que, enquanto donzela, foi chamada de Coré e depois Perséfone.

Perséfone ao ser raptada nas colinas de Elêusis, por seu tio Hades, o deus dos infernos ela tornou-se a sua esposa.

Hades também filho de Cronos e Réia, de um dia para outro, decidiu que precisava de uma esposa e, sem deter-se diante de ninguém, tomou a inocente Perséfone, a fim de entroná-la no Tártaro, o que equivalia a interromper sua existência. Deu-lhe para comer a semente da romã dos mortos para ela se apaixonar por ele e tornar-se rainha do submundo.

Segundo Robles (2006), a figura de Deméter, apesar do símbolo da fecundidade que a envolve, está relacionada com as fases da lua, com a sucessão das estações e com a consolação da maternidade sofredora. Era uma mãe temerosa e possessiva, diante dos fatos que ocorreram com o rapto de Perséfone.

A deusa vagou por nove dias e nove noites, até encontrar Hécate que, cheia de compreensão, acabou por auxiliá-la na busca de Perséfone. Também cria o inverno, representando a maternidade ferida. O inverno espelha sua tristeza. Mãe amargurada reprimiu sua sensualidade, não recebendo mais as visitas amorosas de Zeus, seu amante e irmão.

A deusa era impetuosa, mas possuída pela cólera, ultrajada, em conseqüência do sumiço da filha. Aparentemente vivia feliz e assentada em seu trono de ouro até o momento em que algo íntimo, seu “fruto” mais precioso lhe é roubado. Um rapto apavorante, com aquela carruagem puxada pelos corcéis negros, que levaram sua filha, a doce Perséfone, para o mundo dos mortos.

Segundo McLean, o mito de Deméter e Perséfone, que constituía o cerne dos Mistérios Eleusianos, oferecia um paralelo entre a evolução interior da alma por meio do desenvolvimento cíclico e o ciclo exterior das estações.

Deméter é a deusa da expressão das forças naturais, que se expandem exteriormente sobre a superfície da Terra, a deusa do milho nascido.

Hécate é a deusa tríplice do mundo inferior, guardiã feminina das forças subterrâneas. Na mitologia grega, costuma ser apresentada como uma bruxa assombrosa, a personificação dos horrores do inferno. Segundo McLean esta deusa também é a única que recebeu de Zeus o poder sobre os três reinos, o Céu, o Mar e a Terra: “Ela é uma deusa mediadora, uma deusa-lua arquetípica” (1998, p.77).

A deusa sempre carrega um archote, simbolicamente, ela que pode ser relacionada a uma figura guardiã do nosso inconsciente, que tem nas mãos a chave (carcereira do mundo inferior) dos reinos sombrios que há dentro de nós, também, traz as luzes para iluminar o nosso caminho.

São múltiplas as figuras mitológicas que encarnam nas mulheres. Tanto Deméter, como a Noiva, sofrem quando perdem suas filhas, e machucadas partem para a vingança. Para estes “pais” faltam o instinto paterno (Zeus e Bill).

Deste episódio do sofrimento desta mãe mitológica, estabelece-se a conexão com a personagem Noiva, que também perdeu o seu bebê, que não o viu crescer e também não sabia se estava vivo ou morto.

A personagem de Kill Bill estava contente, ensaiando os passos para o seu futuro, aguardando um casamento e pronta para conceber um filho, quando foi surpreendida com uma bala na cabeça, que interrompeu sua vida por quatro longos anos.

A sua amargura se justifica pela perda temporária de sua vida e pela impossibilidade de conhecer o bebê que lhe foi arrancado de seu corpo, de uma forma tão brutal.

O arquétipo de Deméter, que aparece na Noiva, é a face negativa desta deusa, na medida em que a personagem utiliza o sentimento de vingança para acertar as contas com Bill e com os ex-companheiros. Adota o comportamento destruidor, sem pensar nas conseqüências de seu desatino, assassinando várias pessoas, até chegar aos verdadeiros culpados.

A Noiva se perde, amargurada, desesperada, potencializada pelo seu lado agressivo e pelo desejo de vingança, bem ao contrário do simbólico de uma noiva, do feminino.

Robert A. Johnson descreve como Jung definia o feminino e o masculino:

Para Jung, como o homem possui cromossomos e hormônios recessivos femininos, todo homem, possui um conjunto de características femininas, que se constituem num elemento minoritário dentro dele chamado anima. Da mesma forma, a mulher tem um componente masculino minoritário dentro dela que Jung chamou de animus (...) Tanto o animus quanto a anima agem efetivamente dentro de nós como mediadores entre as partes inconscientes e conscientes de nossa personalidade. (1984, p. 8-57)

Para o animus vir para o consciente, ele precisa ser reconhecido e assumir a posição de mediador entre o inconsciente e o consciente, sendo o animus positivo, de grande auxílio para a mulher.

A Noiva, por exemplo, no estado de possessão do animus negativo, não tem consciência dele e está sob seu julgo. Seu ego também está submetido a este elemento. E esta experiência arquetípica vai desestruturá-la, fazendo que siga em frente, empunhando sua espada, fria como a lâmina de sua arma.


OS SÍMBOLOS EM KILL BILL


A Noiva em treinamento

A espada é composta essencialmente de lâmina e guarda, sendo um símbolo de conjunção, especialmente quando adota na Idade Média, a forma de cruz. Segundo Cirlot, a espada possui o seguinte símbolo:

A espada, entre muitos povos primitivos recebia uma veneração especial. Os romanos acreditavam que o ferro, por sua relação com Marte, afugentava os espíritos malignos. Em sentido primário, é um símbolo simultâneo da ferida e do poder de ferir e por isso um signo de liberdade e força. A espada e o fuso simbolizam, respectivamente, a morte e a fecundidade. Também simboliza o extermínio físico e de cisão psíquica. (1984, p.236)

A espada da Noiva é fabricada no Japão, é oriental, portanto, é curva, lunar e feminina. Já as espadas ocidentais, de lâmina reta, é simbolicamente solar e masculina e foram os hebreus que inventaram a espada, segundo a tradição árabe.

Como a Noiva perdeu o seu “tudo” (o bebê), ela segue para o nada, o vazio, a morte, tingida de vermelho como as cenas pintadas de Tarantino. Instintivamente, a mulher sabe que o excesso desta característica masculina do animus é agressivo e pode ser fatal.

Outro elemento bastante presente nos filmes é a serpente, o ofídio que, segundo a tradição bíblica, é o mal insinuante e ardiloso. Deste animal surgiram os codinomes das integrantes das Víboras Mortais.

Simbolicamente tem um significado ambivalente, tanto pode ser energia da força pura, daí suas multivalências, e considerando para a diversidade de seus aspectos simbólicos, que estes provêm ou da totalidade da serpente ou de um de seus traços dominantes, como descreve Cirlot:

O avanço sinuoso de réptil, associação frequente à árvore e analogia com suas raízes e ramos, mudança de pele, língua ameaçadora, esquema ondulante, silvo, forma de ligação e agressividade no enlaçamento de suas vítimas etc. Segundo Blavatsky, fisicamente, a serpente simboliza a sedução da força pela matéria, como exemplo, Adão por Eva, constituindo a manifestação concreta dos resultados da involução, a persistência do inferior no superior, do anterior no ulterior, o que é ratificado por Paul Diel, para quem a serpente é o símbolo, não da culpa pessoal, mas sim do princípio do mal inerente a tudo o que é terreno (...) Lembramos também que as deusas Hécate e Perséfone, divindades mediterrâneas, se apresentam levando uma serpente em uma ou em ambas as mãos, segundo Eliade. (1984, p.521-22)

Para Jung, a serpente simboliza psicologicamente “um sintoma de angústia e expressa uma animação anormal do inconsciente, uma reativação de sua faculdade destruidora. Cita como exemplo, Mitgard, a serpente da mitologia Nórtica” (apud Cirlot, 1984, p.523).

Segundo Cirlot, há símbolos que concernem ao psicológico, ao cosmológico e natural. Mas há símbolos de conjunção ou que estabelecem relações entre os três mundos, como, por exemplo: “A escada que simboliza a conexão entre a consciência e o inconsciente, porque significa o mesmo quanto aos mundos superior, terreno e inferior ou também, a união da terra e do céu (como todo axial)” (1984, p.47).

Na teoria de Jung, os arquétipos da anima e do animus funcionam como uma matriz que formam os símbolos para a estrutura da consciência. Eles são, também, a fonte que os alimenta, pois, além de gerarem padrões de comportamento humano para vivermos com criatividade, permanecem através da história com marcos de referência, por meio dos quais a consciência pode voltar às suas raízes para se revigorar.

A teoria junguiana mostra que o inconsciente não é somente a origem da consciência, mas também a sua fonte permanente de reconhecimento. E os símbolos são produzidos e revigorados pelos arquétipos, através de nossas fantasias durante o dia e em nossos sonhos durante a noite.

A figura de Beatrix ou Noiva representa o protótipo do feminino, associado à ideia da sedução, da fertilidade e da proteção, que se repetem de infinitas maneiras, tanto nas narrativas mitológicas, como no cinema. E esta personagem que possui tanto o lado feminino e maternal, como também consegue demonstrar seu lado sombrio e vingativo, no mundo criminal de Tarantino.


O ESTILO TARANTIANO



Em Kill Bill, Vol.1 e 2, a crueldade dos personagens chega ao extremo. Vivem em busca de dinheiro e poder e os fins justificam os meios. Eles estão completamente habituados a se movimentarem num mundo sem escrúpulos e não sentem o mínimo interesse ou a mínima necessidade de procurar uma explicação ou justificativa moral pelos atos. As sequencias alteradas se sustentam do ponto de vista narrativo, de acordo com Cabrera. (2006, p. 173)

Neste universo “despedaçado” de Tarantino, os personagens percebem que muito pouco se pode fazer nele e nada podem fazer contra ele. Assim, os criminosos mergulham em seu próprio egoísmo, num cotidiano vazio e sem esperanças, mas lutam contra o inimigo, até o último suspiro. (Cabrera, 2006, p. 82)

A violência de Kill Bil vol. 2 éestritamente cinematográfica, um filme não é condenável em si como cinema, seja qual for seu gênero. O água-com-açúcar tem sua função, como o policial. “Kill Bill vol. 2” não é cinema da violência, mas cinema do clichê. É esse o mérito de Tarantino”, segundo o crítico da Folha (Folha de São Paulo, 13/5/2007).

A meu ver, o mérito de Tarantino é utilizar de uma mistura de Kung-Fu (filmes dos anos 70 e 80, de lutas marciais), lembrando Bruce Lee e os filmes da máfia italiana, marcando o seu estilo de fazer cinema. Ele alterna o colorido com o preto e branco, nas cenas de maior violência e recusa-se a usar a computação gráfica para compor o filme.

O seu estilo é contemporâneo na medida em que usa essa mistura de gêneros de filmes de cinema como uma técnica e com o objetivo de expressar as mazelas da alma humana, como o sentimento primitivo da vingança e sem cair na banalidade.



Referência Bibliográfica:


1. bulfinch, t. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

2. cabrera, j. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Tradução de Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

3. cirlot, j.-e. Dicionário de símbolos. São Paulo: Editora Moraes Ltda, 1984.

4. johnson, r.a. She: a chave do entendimento da psicologia feminina – uma interpretação baseada no mito de Eros e Psiquê. 2.ed. São Paulo: Mercuryo, 1984.

5. Jornal A Folha de 13/05/2007

6. jung, c.g. . Animus e anima. São Paulo: Cultrix, 1995.

7. mclean, a. A deusa tríplice: em busca do feminino. São Paulo: Cultrix, 1998.

8. robles, m. Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos. Tradução de William Lagos e Débora Dutra Vieira. São Paulo: Aleph, 2006.

9. stephanides, m. Os deuses do Olimpo. São Paulo: Odysseus, 2001.


Filme/diretor:

1. Kill Bill – Vol. 1 e 2 (DVD) – 2003 – Miramax – EUA – color – 137 min. Duração – Quentin Tarantino.


Outras consultas e sites:

1. Catálogo do Louvre – The Visit – Museu de Paris/França.

2. Revista História Viva – o tempo do Renascimento. Ed.: Duetto – no. 3.

  1. www.google.com.br
  2. www.kill-bill.com
  3. www.mitologia.org.br

6. 4. www.homepage.mac.com/cparada/gml/constellations.html

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