ANÁLISE DO FILME “O PIANO” E A RELAÇÃO COM O MITO DE PERSÉFONE E COM A MULHER CONTEMPORÂNEA
“À noite, penso no meu piano, em sua sepultura no oceano. E, às vezes, em mim mesma, flutuando sobre ele. Lá embaixo tudo é tão quieto e silenciosos, que me faz dormir. É uma estranha canção de ninar. Tinha que ser. É minha ....” (Ada)
O filme “O Piano”, se passa em 1850 e narra da história de uma mulher que vem para Nova Zelândia a fim de concretizar um casamento arranjado pelo pai, mas esta experiência não era exatamente como ela pensava. Ada não fala desde os 06 anos de idade e ninguém sabe o porquê, nem mesmo ela. No entanto, ela não se sente muda, por causa do seu piano. Ao tocar o instrumento ela se relaciona com o mundo. A protagonista só se comunica por gestos e através de sua filha.
Ada e Flora
Stewart, o marido arranjado, é um homem de aproximadamente 45 anos, natural da Nova Zelândia, que buscava fazer fortuna numa região inóspita e selvagem. O seu único interesse era aumentar o número de suas propriedades, ficar rico e sem se preocupar com os meios para alcançar o seu desejo.
Stewart e os Maioris (nativos da região)
O casamento arranjado com Ada é o recebimento de um dote, o que lhe permitiria comprar mais terras.
Sua dinâmica é puramente racional, seguindo sempre à risca seus projetos pessoais, sem se importar com a sensibilidade de sua esposa ou do outro.
George Baines
George Baines é um morador do lugar e vive nessa região já há algum tempo, sendo o único capaz de entender e respeitar os Maoris. Ele serve como mediador entre Stewart e os nativos. É um tipo mais sensual, tem uma sensibilidade mais primordial, onde a racionalidade tem um peso igual à intuição e à sexualidade.
O MITO DE PERSÉFONE, A SENHORA DO SUBMUNDO: UM PARALELO COM A PERSOGANEM ADA
Prosérpina, obra de Dante Gabriel Rossetti
Conta o mito de Perséfone que a moça debruçou-se para colher uma flor de Narciso à beira de um precipício, quando a terra se abriu e dela surgiu Hades (deus do Tártaro), que a sequestrou para o mundo das trevas. Com seus cavalos negros levou a moça para terra dos mortos.
O rapto de Prosérpina (obra de Christoph Schwartz)
Sua mãe, a deusa Deméter (deusa das colheitas) a procurou por vários dias até que ameaçou lançar a infertilidade sobre a terra se a filha não fosse encontrada.
Ela pediu a interferência de Zeus (rei dos deuses), que fez com que Hades concordasse em devolvê-la à mãe, mas antes o deus dos mortos lhe ofereceu algumas sementes de romã, que ela aceitou e por não ter se alimentado naquele local ela ficaria eternamente vinculada a ele.
As romãs de Perséfone
Na lenda de Perséfone a romã simboliza a fertilidade, a morte e a eternidade.
Perséfone jurou jejuar, contudo não resistiu e comeu seis bagos da romã. Esse momento de fraqueza traduziu-se em seis meses de permanência no submundo, tempo que miticamente representavam os meses de mau tempo, de Inverno e Outono.
Perséfone então passa a viver seis meses com Hades e a outra metade do ano, com a mãe no Olimpo, que simboliza a primavera e a época das colheitas.
O encontro entre Perséfone e Deméter
Traçando um paralelo com a protagonista Ada e o mito de Perséfone é possível identificar alguns elementos trazidos por esta lenda mítica e que pode ser utilizada como uma metáfora, para o entendimento da subjetividade de Ada e também da mulher contemporânea.
A iniciação no mito dá-se com o rapto de Hades fazendo referência à forma como se inicia o contato com o inconsciente para quem possui a consciência impregnada pela inocência, como no caso de Perséfone.
O rapto pode ser uma metáfora para o casamento arranjado pelo pai de Ada e que pode ser visto simbolicamente como uma lesão infligida ao ego, mas que vai servir para provocar o ego a abdicar de seu controle exclusivo sobre o psiquismo, estimulando-o ao reconhecimento do centro maior, o Self.
A descida (a experiência) inicialmente traumática é, entretanto, a chave para um vasto campo de descobertas interiores. O tema da descida ao inconsciente, seguida da ascensão vai transformando a ingênua Perséfone na grande “Senhora do mundo Subterrâneo”, mas não sem antes sofrer os períodos de pavor através do qual um psiquismo inocente é invadido pelo confronto com os conteúdos assustadores que estiveram durante longo tempo guardados no inconsciente.
O rapto de Perséfone – obra de Rubens
A Perséfone/Ada imatura geralmente aparece sob a roupagem da vítima, da mártir, da incompreendida, metáfora da mudez da protagonista do filme “O Piano”.
Só depois, com o tempo e a maturidade conquistada pelo esforço na relação com o inconsciente, Ada poderá entender melhor suas manifestações psíquicas e deixar de projetar no externo as raízes de seus males para dirigir de maneira sábia a relação com os conteúdos do mundo do inconsciente, porque serão poderosos aliados.
Após o período de sofrimento, Perséfone é libertada e é agraciada com o poder de circular tanto no Olimpo como no Hades e saberá dominar tanto o céu como o submundo, visando penetrar nas raízes da dor e descobrir o seu destino.
Abandonar o lugar de inferioridade antes habitado e colocar-se como pessoa ativa na construção do próprio destino é uma mudança que desafia o antigo padrão tão cultivado pela Perséfone menina. Despedir-se dos aspectos infantis e assumir o ônus da vida adulta, responsabilizando-se pela própria psique, assumindo seus deuses e monstros interiores é tarefa heroica, que transforma a vítima assustada na Perséfone/Ada em sábia.
Conforme a teoria junguiana, a sabedoria é resultado da construção de um mundo íntimo rico e forte, que não é mais tratado como inimigo. Relacionar-se com o mundo subjetivo de si mesmo e estar conectado às próprias profundezas é ser guiado pelo propósito superior da individuação.
AS FACETAS DO MUNDO FEMININO EM “O PIANO” E A IMPORTÂNCIA DA CONSTRUÇÃO DE LAÇOS AFETIVOS
Ada e Baines
Depois de traçar um paralelo com Ada e o mito de Perséfone, percebo que algumas mulheres de nossa era vivem em dois mundos paralelamente.
O primeiro é o mundo interno guardado a sete chaves, onde são guardados seus segredos mais íntimos e verdadeiros.
O segundo trata-se do mundo externo, rotineiro, cotidiano.
Desta forma, as mulheres na atualidade vivem a realidade nua e crua, mas sem fazer uma conexão com o seu mundo interno. A estrutura de sua personalidade é dupla: uma máscara exterior firme e bem adaptada ao social e a outra é rica e intensa, da qual poucos chegam a saber a sua existência, cujo significado será para ela um perpétuo tormento enquanto ela não se decidir a vivenciá-lo, como como caso de Ada. Provavelmente só vai relevar os seus segredos com alguém muito próximo a ela e sinta muita confiança.
A protagonista do filme começa a perceber então que Baines provoca nela um processo de libertação interna e que a fará reunir harmonicamente esses dois mundos.
Ada percorreu um longo caminho que a levou de volta à vida, aí incluindo a possibilidade de resgatar a fala.
O processo do crescimento interior ajuda a sua história deixar de ser a de uma mulher passiva, conduzida pelos acontecimentos, para se tornar dona de seu destino. Através da experiência significativa vivida com Baines, ela retira as suas forças para vivenciar o seu mundo interno e o externo, que eram completamente separados e opostos.
Baines e Ada
O resultado deste processo de reconstrução interior propiciou também a sua filha, que voltou a ser brincalhona e feliz e poder ser livre da responsabilidade de agir, como uma espécie de alter ego da mãe e assim a voltar a ser apenas criança.
Flora
Ficha técnica:
Filme: O Piano
Roteiro/Direçãor: Jane Campion
Ano de produção: 1993
País: Áustria e França
Elenco: Holly Hunter (Ada), Sam Neil (Stewart), Harvey Keitel (Bainer) e Anna Paquim (flora)
Referência bibliográfia
barros, v.m.de; nabholz, m.t.de b. As faces eternas do feminino no cinema e na propaganda. São Paulo: Triom, 1996.
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