O FIGURINO DA DONZELA GUERREIRA EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Diadorim (Bruna Lombardi)
João Guimarães Rosa
(1908-1967) foi um dos mais importantes escritores brasileiros, o qual, no
contexto literário, destacou-se pelas invenções linguísticas criando um
linguajar sertanejo cuja estética estava inserida no realismo mágico, sendo
estas as principais características de seus contos e romances.
Ademais, foi diplomata e
ocupou uma cadeira junto à Academia Brasileira de Letras, de 1963 a 1967. Dentre
a sua vasta produção literária, o livro Grande
Sertão: Veredas, publicado em 1956, proporciona ao leitor a imersão numa
história com muita aventura, fantasia e paixão, inserida no contexto do tema do
sertão. O cenário político da obra é representado pelos latifundiários, e o
poder econômico é mostrado a partir da exploração da mão-de-obra escrava, a
qual se torna pano de fundo deste livro, que contém enorme relevância dentro da
cultura brasileira.
Outra característica da
obra é o tempo, o qual não é linear na narrativa, nem nas memórias do
protagonista-narrador, razão pela qual os episódios se sucedem de modo
aleatório, sem a sequência temporal de um romance. Além disso, o mundo
retratado é o sertão mineiro, cujo espaço é simbólico, estético e imagético, sendo
considerado um elemento fundamental nessa obra roseana. A obra quebra as
fronteiras dos gêneros literários ao misturar poesia, epopeia e romance, num
universo onde o espaço narrativo é múltiplo, alegórico e não se desenvolve num
único local.
Diadorim, cujo foco é na
problemática do feminino ocultado na narrativa, a qual está inserida numa
cultura patriarcal e falocêntrica. Outra personagem é o cangaceiro Riobaldo, e
sua figura, que traz em sua subjetividade, a busca de um traço de identidade e representatividade,
no espaço sertanejo. Nota-se que a criação literária é realizada a partir do
imaginário de suas personagens e o sertão é, também, um espaço metafórico da
luta entre as forças do bem e do mal, inseridas no universo ficcional, que
transforma um cangaceiro em herói medieval.
Riobaldo é um professor
da cidade, que formula uma série de interrogações ontológicas como a
existência/vida, a morte/demônio e o bem/mal. A sua luta compreende as mesmas
dificuldades que qualquer indivíduo que lida com a realidade, cujas
contradições se mostram presentes, com maior força. Ao rememorar as passagens
de sua vida naquele lugar, ele acaba, também, por se descrever; entretanto, a
sua personalidade só é descoberta pelo leitor/espectador quando ele esmiúça os
seus pensamentos e sentimentos, onde o impenetrável só é possível ser
desvendado nas sombras de seus devaneios, e nas histórias narradas sobre o seu povo.
Nesse contexto, o sertão vai muito além das demarcações geográficas, uma vez
que está em toda parte.
O protagonista encarna,
de forma plena, Tatarana, com sua realidade, tentando, de alguma forma,
suprimir o jaguncismo, na medida em que busca a justiça para mediar a sua
conduta com vistas à sua redenção. Paradoxalmente, a personagem realiza o mal
no cangaço, sem lei e sem ordem, para obter o bem e poder ver o mundo, por meio
do olhar de jagunço, e compreender a sua iniciação no sertão por meio de suas
experiências pautadas no bem e do mal.
Na história do cangaceiro
e da sua amizade com Reinaldo/Diadorim, eles enfrentam as guerras, entre os
bandos de jagunços no sertão das “gerais”, ao mesmo tempo, em que lutam pela
vingança contra Hermógenes, o jagunço que assassinou o pai de Reinaldo. Já
dizia a personagem Zé-bebelo: “pelo avesso que se chega ao direito”. (Candido,
2011, p. 125)
Reinaldo se apaixona por
esta mulher-homem, cujo amor será proibido. O herói desconhece o seu segredo de
ser mulher e a sua paixão homossexual o atordoa. A sua única pista é o seu codinome
feminino: Diadorim. A sua atração iniciou na adolescência, quando eles se
encontraram num porto de um afluente do rio São Francisco, na ocasião em que
Riobaldo pedia esmola para pagar uma promessa feita pela mãe. Diadorim tem como
característica sua vestimenta masculina, que serve para camuflar a sua
verdadeira identidade entre os homens, bem como, ajuda-lo na sua proteção:
A sua
indumentária, enquanto se pode mudar o que uma cultura considera como traje
masculino ou feminino, as distinções de sexo e de gênero podem ser feitas por
meio do usar ou não uma roupa específica, uma cor, uma textura (...) de
determinada vestimenta. (Barnard, 2003, p. 169)
Ao lado disso, o sexo
pode ser descrito como sendo uma coleção de diferenças físicas e biológicas, enquanto
que o gênero é um fenômeno cultural, razão pela qual as roupas nem sempre servem
para distinguir o gênero do indivíduo na obra. A guerreira e a sua figura
ambígua, com as suas atitudes e gestos masculinos, apresentam-se de modo não
titubeante na hora dos conflitos. (Monteiro, revista Língua e Literatura, 2005
artigo)
Mas, no sertão roseano
não há espaço para a mulher e nem para o amor, sendo que a personagem só é
reconhecida após a morte, quando revela o corpo nu, para a surpresa de
Riobaldo.
Segundo Passos:
O
imperioso desejo de Diadorim recupera a velha ordem: da vingança de sangue, na
trama ficcional; e a da “donzela guerreira”, na tradição literária,
reiterando-a seja pelo papel de substituta do pai, seja pela carência de sangue
que perpetua, literalmente, o “ódio de gente velha”. (Passos, 2000, p. 168)
A autora entende que o
mal vai sobrepor-se à nova Lei, desembocando em mais um rito, propiciador de
mudanças e afastando o mundo sertanejo prosaico, que leva Riobaldo a visualizar
“o diabo na rua, no meio do redemoinho”. Assim, os fenômenos naturais, como o
vento e o redemoinho, indicam sinais de potências misteriosas e inexplicáveis,
aliando-se a uma consciência de fantasias, regulada pelo mundo do sagrado e do
fantástico, traço principal deste personagem. O demônio, que é projetado na
personagem Hermógenes, faz parte de sua travessia interior; seu
autoconhecimento será composto de uma parte demoníaca, que inclui Diadorim, uma
mulher travestida, o feminino e a guerra.
Na obra de Guimarães Rosa,
as santas penduradas nas paredes de barro protegem a todos, enquanto a noiva de
Riobaldo, a moça virgem, é aquela mulher doce e passiva, que serve para
casamento. Enquanto a prostituta Nhorá é descrita por Riobaldo como: “(...)
pimenta branca, boca cheirosa, o bajo de menino-pequeno”. (Passos, 2000, p. 70)
Portanto, a redução da
mulher, apenas em seu corpo, pertence a uma cultura que não reconhece o
feminino com a sua fragilidade, a sua força e também a sua coragem. Em geral,
tanto na literatura, nas artes e no cinema, na história de gênero, o feminino é
sempre negativo. Segundo a pesquisadora norte-americana E. Ann Kaplan sobre o
feminino, o patriarcado é o responsável pela mulher não ter lugar na sociedade
aonde possa confirmar o seu feminino, na esfera pública e nem na vida privada.
(Kaplan, 1995, p. 72)
Guimarães Rosa traça o
perfil de Diadorim, que inserida no universo masculino, tem que renunciar à sua
feminilidade e ao amor para pagar um tributo ao pai. O nome Reinaldo/Diadorim
se forma entre o masculino e o feminino e aponta para uma ambivalência em sua
identidade. No desfecho da obra, e num momento apoteótico, a morte de Diadorim
torna acessível ao jagunço a mulher-cadáver pela sua nudez, cuja imagem não está
mais envolta em armas, mas numa luz que evoca o domínio do sagrado.
A donzela vai subverter a
ordem de gênero no universo dos homens com o seu corpo nu, que jaz na cama de
pedra como uma máscara (seria outro travestismo que a morte exige?) e que nem Nossa
Senhora da Abadia pode impedir o triste final de Diadorim. A personagem
enigmática era reconhecida por Riobaldo como: “Diadorim representava essa alma
incognoscível, fechada a sete chaves”. (Olea, 2006, p. 56)
Apesar de que, Riobaldo é
o duplo de Diadorim conforme explica Matos:
Riobaldo também é o duplo e se
espelha na duplicidade de Diadorim: é o ‘através de’ que funda o eixo da
reflexão e o procedimento de espelhamento de representação da imagem do
discurso. O que não se viu no momento da experiência, no momento da vivência,
se evidencia como sentido através dessa fala de espelhos. (Matos, 2011, p. 71)
Diadorim é o suporte do imaginário
do cangaceiro e de seu contar, em várias passagens, compondo elos espetaculares
dos “efeitos de sentido” para a existência do atormentado jagunço e que
corresponde ao seu duplo. A personagem, mesmo encapsulada no seu corpo de homem,
é também a ressonância de um amor condenado de Riobaldo, que carrega o peso de
um amor não correspondido. A donzela guerreira, após a sua morte, transforma-se
apenas em recordações nas memórias de um velho cangaceiro, que ao relatar sobre
a sua infância e a breve carreira de professor de Zé Bebelo, até o momento da
sua entrada no cangaço, não conhecia o amor.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
1.BARNARD,
Malcolm. Moda e comunicação. Rio de
Janeiro: Rocco, 2003.
2.CANDIDO,
Antonio. A personagem de ficção. São
Paulo: Perspectiva, 2011.
3.FAUX, Doroty
Schefer. Beleza do século. São
Paulo: Cosac & Naify Edições, 2000.
4.KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
5.OLEA, Héctor. O professor Riobaldo: um novo místico da
poetagem. Cotia/SP: Ateliê
Editorial: São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2006.
6.PASSOS, Cleusa
R. Guimarães Rosa: do feminino e suas
estórias. São Paulo: Hucitec/FAPESP,
2000.
7.ROSA, João
Guimarães. Grande Sertão: veredas.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
8. Artigo Paulo
Roberto de Araújo Monteiro – Guimarães
Rosa: o feminino ocultado. Revista
Todas as Letras: Língua e Literatura: ano 7, no. 7ª edição especial.
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