A verdade e a realidade no cinema iraniano de Abbas Kiarostami

Rosangela Canassa


O Vento nos Levará (1999)


Abbas Kiarostami (1940-2016) foi ator, cineasta, roteirista, produtor e fotógrafo. Posteriormente, iniciou a sua carreira como design gráfico e a partir da obtenção do seu diploma expedido pela Universidade de Belas Artes do Teerã, o diretor colocou o seu país no mapa do cinema internacional.
Outra influência importante é do Neorrealismo Italiano de Rossellini como a baixa produção, atores amadores e a procura em introduzir a ficção na realidade.
Segundo Mascarello:

Os filmes neorrealistas são um conjunto de fatos
cotidianos e coletivos, de conteúdo social, que podem ser
vistos e vividos empiricamente por qualquer pessoa.
Não se aceita, pois, nesta noção, nenhum tipo de
“realidade oculta” ou transcendente aos fatos que são
mostrados de maneira imediata ou de realidade
individual, excepcional ou fantástica.


Kiarostami provoca o espectador ao acoplar as pequenas câmeras no interior do automóvel para introduzir a ficção na realidade e desconstrói as fronteiras entre a verdade e o real, o fato e a ficção:

O contato físico da câmera com as personagens e a
perfeita integração com espaços, lugares e paisagens capazes
de se tornarem parte integrante da história, de proporcionarem
olhares inéditos da realidade (...), de desestruturarem os
estereótipos visuais até então dotados para contar
histórias dramáticas (...). (Mascarello, 2006, p. 200)


A visão objetiva do cineasta-câmera, que orquestra o conjunto das relações da sua linguagem cinematográfica incide uma certa flexibilidade no planejamento como a cena que será filmada e que implica num recurso frequente à improvisação como decorrência da utilização dos cenários reais, segundo o autor.
O diretor iraniano também não ocupa o seu cinema de política, mas sim pela arte de filmar como o imprevisto e os seus personagens, que não são definidos claramente por seus objetivos e ações conforme o cinema clássico. O seu personagem é impulsionado pelas emoções íntimas e o estado psicológico em que está imerso. A ambiguidade dos personagens faz com que o herói não se destaque dos demais e o vazio e a solidão se une ao seu imaginário de um mundo instável.
O cinema visto desse ponto de vista é o próprio instrumento do realismo, por sua a capacidade de captar de forma imediata a espontaneidade do ator em cena como no filme Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987).
O filme narra a história de um garoto de 8 anos, que ao fazer seu dever de casa percebe que pegou o caderno de seu amigo de classe por engano. Ele vai até uma vila nos arredores de seu bairro com o intuito de encontrá-lo para devolver o caderno. No caminho, ele pergunta a todos que encontra onde mora o seu amigo e todos respondem que não sabem de quem ele está falando. Ele encontra um senhor que tenta ajudá-lo, mas a noite chega e Ahmed fica com medo dos latidos dos cães e volta para casa com o caderno debaixo da blusa. O sentimento de solidariedade da criança em relação ao seu amiguinho de escola torna o filme memorável e que chega a evocar nossa infância.
A utilização de atores não profissionais (típica do neorrealismo) na maioria de seus filmes prevalece a simplicidade nos diálogos, o que torna possível uma maior liberdade de atuação, mas não menos encantadora.

Onde Fica a Casa do Meu Amigo?


Segundo a opinião de Rossellini trabalhar com atores não profissionais é que eles não possuem uma ideia preconcebida uma vez desinibidos do meio que os paralisava diante da câmera. Os atores amadores possibilitavam eles serem eles mesmos em cena, numa espontaneidade completa. (Mascarello, 2006, p. 72)
Os seus personagens também se misturam à paisagem local e aos elementos da cena, que provoca uma ‘desdramatização’ como por exemplo, o filme Através das Oliveiras (1994). Uma pequena cidade no norte do Irã recebe a visita de uma equipe de filmagem que está produzindo um filme. O protagonista masculino se apaixona pela protagonista feminina, uma jovem atriz que mora na região.

Através das Oliveiras (1994)


O protagonista está apaixonado deixando transparecer até para o diretor do filme, que funciona como cupido entre os dois atores.

Através das Oliveiras (1994)


O filme seguinte O Vento nos Levará (1999) é a espera pela morte de uma anciã que mora num vilarejo com casas de barro. A figura do ‘engenheiro’ com o seu celular e o automóvel contrasta com a paisagem local, árida, com muita poeira, enquanto o vento sopra nos campos do interior da aldeia.
O chamado à realidade ocorre no filme quando o protagonista sai em busca de um médico das redondezas. A figura do médico se assemelha ao idoso sábio como no filme Onde Fica a Casa do Meu Amigo? Viajando de moto, em planos abertos, que destacam a paisagem e em meio aos diferentes percursos da motocicleta, o espectador observa rostos, gestos e palavras.
Durante o itinerário transcorre o diálogo entre o ‘engenheiro’ e o seu interlocutor sobre a realidade da comunidade, a beleza da natureza e as questões relacionadas à moral, a religião, etc.

O Vento nos Levará (1999)


O diretor e a sua desconstrução referente a representatividade tradicional, através de recursos como a câmera, que recusa as regras de estilo canônico e a própria narrativa, a partir da ausência de causalidades, os modelos tradicionais não são compatíveis com suas construções fílmicas, que possuem também um caráter não linear e com finais em aberto.
A sua estética cinematográfica desperta as múltiplas vertentes de seu cinema iraniano e ocasiona uma outra percepção do mundo islâmico, como a pureza infantil, os personagens num diálogo com desconhecidos, estrangeiros que também contemplam da paisagem construída para a ficção ou para a realidade de Kiarostami.
O diferencial em seu cinema é que a sua temática se baseia no que é mais subjetivo como o cotidiano, a solidão, o tempo e das distâncias. E o que se apresenta em seus filmes citados abre um caminho às diferenças, ao ato de acolher o outro como o amigo, o vizinho, o imigrante ou o estrangeiro, numa espécie de rota que é necessário passar para criar para uma rede de solidariedade entre todos os personagens, independentemente de onde vieram ou para onde seguirão.
Ele não tenta melhorar as pessoas mostrando uma solidariedade sobre-humana, mas a vida como é e permitindo aos seus personagens a ação da ajuda mútua.
A pretensão do diretor de registrar o imediato do real é evidente, ele consegue extrair de seus filmes uma filosofia visual a partir da fotografia do filme imprimindo uma noção de realidade, sem os artifícios habituais do próprio cinema.
Kiarostami foi o grande precursor desse tipo de cinema contemporâneo no Irã. A desconstrução no sentido clássico do cinema como a criação dos atores-personagens, onde o verdadeiro e o falso convivem lado a lado e não causa nenhuma surpresa para o espectador, que acaba refletindo sobre o próprio processo de fazer cinema.




Ficha técnica dos filmes

Título: Onde Fica a Casa do Meu Amigo?
Ano/país: 1987, Irã
Elenco: Almed A. Poor, Babek A. Poor

Título: Através das Oliveiras
Ano/país: 1994, Irã
Elenco: Mohamad A. Keshavarz, Zarifeu Sihva 

Título: O Vento nos Levará
Ano/país: 1999/Irã e França
Elenco: Bahman Ghobadi, Behazad Dorain e Noghre Asadi



Referência bibliográfica

MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006.

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