RACISMO E COTIDIANO NO FILME MADAME SATÃ: ARTE E SOCIEDADE
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Cartaz do filme Madame Satã |
Rosângela Canassa
No
Brasil e nos países do mundo, principalmente os Estados Unidos, ouvimos algumas
palavras do tipo: desumanização que é a ação preconceituosa que nega a
humanidade da natureza de outro ser humano, que passa a ser reconhecido como
“coisa”, num processo de não reconhecimento da dignidade desse outrem,
acarretando atos violentos (objetivos e subjetivos); o não respeito aos
direitos humanos, a perda da qualidade moral humana. O termo preconceito
designa o juízo/conceito pré-concebido sobre algo ou alguém, que se materializa
em ações discriminatórias, autoritárias e intolerantes. Já a violência são
aquelas ações autoritárias e geniosas com intuito de afetar de modo coercitivo
um ser humano, podendo ocorrer de duas formas: objetiva (violência física) ou
subjetiva (violência psicológica).
O filme Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002) dá a visibilidade a todos estes termos e estão relacionados às pessoas à margem da sociedade, que inclui as orientações sexuais, que se diferem da heterossexual e são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, crenças ou políticas. A narrativa do filme nos aponta para estes problemas, que não é apenas subjetivo, é um assunto que fala da intrincada relação dos sujeitos com identidade, a cultura, a história, as políticas, as ciências e as religiões.
Madame Satã
retrata um homem sensível e marginalizado, que encontra em sua arte uma saída
para viver com dignidade, mas sem esquecer os seus amigos. O ator Lázaro Ramos,
que interpreta a Madame, ele foi revelado no Grupo de Teatro Olodum de Salvador
e costumava atuar no Teatro Vila Velha. Desde 1994 ele participou de espetáculos,
programas de TV, novelas e fez algumas participações no cinema até ganhar o
papel principal em Madame Satã.
O close-up do rosto do ator inicia o filme
e termina numa estrutura narrativa circular e o personagem é homossexual,
negro, analfabeto e transformista. Ele foi construído com base na figura do cearense
João Francisco dos Santos (1900-1976), que vivia no Rio de Janeiro e era
conhecido como o malandro carioca, emblemático, excluído, porém ele não se
vitimou.
As
cenas são filmadas de perto e com raros planos gerais. Os planos fechados e nas
fotografias de Walter Carvalho as cenas são claustrofóbicas, na medida em que o
diretor escolhe como cenários os pátios, os quartos, os teatros e botequins. E
nenhum cenário foi realizado em estúdio, porque foram aproveitadas as construções
no Rio, das décadas de 1930 e 1940.
Madame enfrenta a polícia, sendo detido por desacato às autoridades, porque luta por diversas vezes em resposta a insultos que tivessem como alvo mendigos, prostitutas, travestis e negros. Numa das cenas, o personagem vai ao cinema e assiste Josephine Baker, a Vênus de Ébano do cinema americano, que era negra e provocava alvoroço em suas apresentações, sempre em trajes ousados, segundo FAUX (2000, p. 108).
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Josephine Baker – dançarina americana |
O
diretor americano Cecil B. De Mille, que em 1930 produziu um filme com o nome Madame Satã e a atriz Greta Garbo
interpretava a protagonista com o figurino de Adrian Adolph Greenberg, famoso
figurinista de Hollywood.
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Madame Satã (1930) |
O nosso
herói da Lapa se traveste, se paramenta para se apresentar nos bares, imerso na
identidade fluída:
A roupa da dominadora
implica em fantasias, desejos expressos, como o uso da máscara, que significa
“sou anônima” e parece ameaçadora e vestida de poder. A roupa funciona como um
tipo de fantasia mascarada que disfarça subversivamente o indivíduo no traje de
um self de fantasia como o herói da Lapa, que se traveste, se paramenta para
poder se apresentar nos bares, imerso na sua identidade fluída (Mascarello, 2010, p. 379).
Segundo
o crítico Denilson Lopes, os estudos culturais e os estudos de gênero, a
experiência não só se insere num solo sócio-histórico, mas também se constitui
como na narrativização como instrumento de construção da identidade, que
transita pela questão da formação das identidades, que deve ser vista como
questão não só lógica, formal, filosófica, mas sobretudo histórica, social e
política.
O
crítico acrescenta que, ao retratar o famoso malandro da Lapa, cruel e rebelde,
humilhado e terno, nunca vítima, temos uma emocionante contribuição para uma
outra história do Brasil, pelas suas margens e pelos seus excluídos. E alinhado
com o New Queer Cinema, que procurou
nos EUA politizar a homossexualidade incorporando questões de classe, etnia e
condição periférica, sem aderir a narrativas hollywoodianas. Karim Ainouz
realiza um filme sem didatismo piegas nem bom-mocismo politicamente correto.
Enfocando o período antes de o protagonista assumir o nome de Madame Satã, esse filme realiza um
cruzamento rico sobre o que é ser negro, pobre e homossexual no Brasil.
Segundo
Walter Mariano, em relação a performer Madame Satã no filme:
Curiosamente, esta face
não conveniente lembra outras faces, fotografadas e apresentadas por Arthur
Omar, na Bienal Internacional de São Paulo de 1997, em uma exposição batizada
de Antropologia da Face Gloriosa. Trata-se, é claro, de um ensaio também sobre
o mesmo arquétipo que Madame Satã, que tangenciou ao longo da vida (Encontro de
estudos multidisciplinares em Cultura – VI ENECULT – Bahia – maio/2010).
A obra
do diretor é assumidamente inspirada nos trabalhos de Arthur Omar, artista que é
formado em antropologia e etnografia, o que o levou a desenvolver vários métodos
em antropologia visual.
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Fotografias da Exposição Antropologia da Face Gloriosa (Arthur Omar - 1997) Fonte: http://nossamaisena.blogspot.com/2009/06/arthur-omar.html |
O
diretor ao abordar as questões identitárias, o preconceito contra negros e
homossexuais, bem como, o travestimento, Ismail Xavier nos faz pensar sobre as
figuras marginais no cinema:
(...) a prostituta ou o
bufão tornado exótico na televisão, mas pensar o travestimento que atravessa a
todos nós, dentro de uma longa história de troca constante de fronteiras entre
o masculino e o feminino, incluindo dos xamãs, aos ciborgues, as amazonas aos
eunucos, das dames aos onnagata, dos
castratti às divas de ópera, do cinema e da música, do andrógino original aos
deuses hermafroditas (...) (Xavier, 2010, 385)
Uma
outra inspiração para o filme foi O bom crioulo de Adolfo Caminha, cujo romance
teve um papel precursor sem reeditar os cacoetes cientificistas do naturalismo
do século XIX. O escritor Adolfo Caminha (1867-1897) fazia uma paródia do amor
romântico e se dá na subversão do par amoroso, constituído, aqui, por dois
homens, o que seria impensável para essa geração:
No romance,
manifestam-se de maneira clara as convenções naturalistas. A reação às
idealizações da estética romântica conduziu os escritores da segunda metade do
século XIX à busca de uma literatura fundada na verdade, na exposição crua e
direta das relações humanas (site: google – acesso 05/04/2019).
Na
realidade ficcional brasileira, o homossexual é visto sempre como anormal e
transgressor. O diálogo com outros personagens transgressores do cinema e da
literatura, a questão da identidade poderemos compreender como uma experiência:
“(...) experiência traz uma história, uma verdade, não a verdade, que é sempre
mediada por discursos sociais” (Scott, 1999, p. 42).
A
experiência lembrando Joan Scott, não é origem de explicação, evidência
autorizada, mas o que buscamos explicar, aquilo sobre o que se produz
conhecimento, que nos diz que é importante refletir sobre quem fala, conforme a
frase de Kilomba:
Só quando transformamos
as reconfigurações de poder – que significa quem pode falar e quem pode fazer
perguntas e quais perguntas – então reconfiguramos o conhecimento. Na arte
também produzimos conhecimento, ao criar trabalhos, que gerem perguntas que não
estavam lá antes (…). Para mim, um dos papéis importantes da criação de um
trabalho de arte é desmantelar essas configurações de poder ao recontar
histórias que pensávamos conhecer. Dar e criar outro sentido de quem somos. Nós
somos muitos. (Kilomba)
O personagem carioca traduz a sua percepção da vida e a sua forma de se relacionar com o mundo e ao mesmo tempo ele imagina a possibilidade de assumir riscos e ter a coragem exigida pelo ato de fazer
escolhas, que gera a confiança necessária, onde ninguém, em lugar algum, pode
apontar a diferença entre um caminho ou outro.
E as
suas condutas acabaram sendo vistas pela sua singularidade e se escondem uma
fragilidade, que fica invisível debaixo das barbas viris ou com as costas
musculosas como de Madame. O protagonista busca a sua identidade perdida por
suas condições sociais desfavoráveis e tece as diferentes partes do indivíduo,
numa unidade da sua plenitude. A estigmatização por ser negro, pobre e
homossexual, não impede que ele faça as suas escolhas, inclusive, no âmbito
sexual, mesmo correndo perigo.
O diretor atualiza
certos elementos e introduz anacronismos nas reações sociais e raciais. Faz do
filme e do personagem veículos para a política racial e a política sexual dos
dias de hoje, achando em Madame Satã o sujeito ideal, pois era homossexual e
negro (Rodrigues, 2008, p. 100).
O filme
Madame Satã pode ser visto como uma obra
importante no que diz respeito a repensarmos o preconceito, o racismo contra o
negro, contra o pobre, contra o índio e a mulher, mas não só como uma fobia
generalizada (Sedgwick 1985), mas como um ato contra o outro, o diferente,
quando reafirmado e manifestado por meio da violência.
Dessa
forma, o filme de Karim Aïnoz revela ao espectador a força do protagonista e a
sua resistência, que se manifesta na sua alegria, em querer livre, homem ou
mulher e sem deixar de ser uma madame ou um satã.
Num
desfile de carnaval, Madame faz um gesto de afirmação de uma identidade, pela
máscara, pelo jogo constante na vida e no palco. E o espectador no cinema também
participa junto com o seu delírio, o transe, numa espécie de sedução sem
escapatória.
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Fernanda Carvalho