O material iconográfico da artista francesa Louise Bourgeois em A pele que habito de Pedro Almodóvar
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The Birth (O nascimento) – 2007 – Louise Bourgeois |
Hoje, a ideia de uma
sexualidade culpada faz muito menos sentido no campo da arte. Talvez ela tenha
sido substituída por uma ideia de um corpo obsoleto, ou por partes do corpo
obsoleto, que não serve mais para acompanhar o ser humano na sua empreitada
vida afora. Daí vem a atração pelo fake. (Canton, 2008, p. 49)
Em A pele que habito (2011), o famoso cirurgião plástico Robert Ledgard
(Antonio Banderas) tenta provar ao meio científico que é possível a construção
de uma pele humana como uma verdadeira couraça, que protege contra todo o tipo
de agressão. A referência importante é o filme Olhos sem rosto (Georges Franju, 1959), no qual um famoso cirurgião
tenta transplantar um novo rosto para a filha, cuja face foi transfigurada em
um acidente. Na busca de uma cobaia e numa ausência total de escrúpulos, o
médico sequestra um homem e o transforma em objeto de experiências
dermatológicas e ginecológicas.
Vicente (Jan Cornet) se transforma
em Vera (Elena Anaya) revestida com a pele artificial criada pelo médico. O
filme ultrapassa a norma que rege a normalidade social em que o corpo é
atingido apenas como biológico e fisiológico. Vicente é travestido de um corpo
de mulher, que se opõe à transformação e a sua nova identidade transgênera. A
personagem e suas transformações corporais terão que se reinventar diante de
sua adversidade, que o seu destino lhe apresenta.
O corpo é apresentado passível de
transformações pela medicina como um corpo inacabado e em constante mutação e
envolve o tema da transexualidade ao transportar a troca total de sexo, que
demonstra o interesse do olhar almodovariano pelas diferentes etapas da
cirurgia, as metamorfoses sucessivas que o corpo vai experimentando e apontando
para o tema da identidade e da sexualidade, na medida em que o novo rosto e
corpo de Vicente transforma-se nas formas femininas de Vera. A personagem após
a cirurgia não pode mirar-se numa casa sem espelhos, porém a sua imagem é
refletida nos móveis de superfície brilhante e nos talheres que acompanhavam o seu
prato.
Vicente/Vera se mostra frágil e a
roupa que cobre o seu corpo funciona como uma segunda pele construída pelo
estilista Jean Paul Gaultier, para auxiliar na cicatrização dos cortes. O
figurino também informa ao espectador o estado da alma da personagem e o
estilista francês, por meio da vestimenta, apresenta o processo da personagem
numa pele que ela não habita e a roupa transforma-se num aspecto simbólico de
proteção como o body cor da pele.
Nas obras de arte na residência de
Ledgard proliferam as imagens da deusa Vênus e suas versões como Vênus de
Urbino (Ticiano, 1538) e a Vênus no espelho (Diego Velásquez (1647-51). No
âmbito da visualidade a Vênus de Urbino se converte numa metáfora do corpo de
Vera, que o médico contempla a beleza construída por ele e é como um reflexo no
espelho conforme o quadro de Velasquez, dando às costas ao espectador.
Segundo Sanchez: “evoca a nudez e o erotismo carnal como as Vênus de Ticiano coladas na parede do corredor da mansão e as imagens se organizam num programa iconográfico” (Sanchez, 2011, p. 77).
No filme de Almodóvar, as imagens
das Vênus nuas aludem diretamente ao tema principal do filme, que é a mudança
de sexo e os efeitos sobre as lembranças de Vicente/Vera, que como mostra a
cena através da janela, o personagem vestindo um manequim feminino na loja de
roupas de sua mãe ao confeccionar um vestido. A volta no tempo revela a
criatividade do diretor ao mostrar uma reminiscência de Vicente e ajuda a
construir a sua identidade perdida e revela as suas origens no filme. Além
disso, a sua rejeição por um novo sexo tem seu repúdio revelado na cena em que
a personagem rasga os vestidos enviados ao seu quarto onde estava confinada.
Dessa forma, os restos de retalhos
dos tecidos picados irão desempenhar uma das atividades realizadas mais tarde
por Vicente/Vera, que remetem às esculturas de Louise Bourgeois (1911-2010). A
própria personagem elabora os seus bonecos de pano baseados nas obras da
escultora francesa, o material iconográfico como os bonecos e veste-os com
restos dos retalhos. A alusão à obra da artista não é casual, Almodóvar utiliza
as obras de arte da artista, que se convertem em referência visual e também
servem para ilustrar o processo de desenvolvimento físico e psíquico de Vera,
as quais envolvem um processo de adaptação à nova situação.
Segundo Katia Canton:
Louise Bourgeois foi profundamente marcada por sua
história pessoal. Os processos de construção das obras são revelados por ela
mesma, num mergulho a sua infância, quando contemplava a atividade da mãe,
confeccionando tapetes, e testemunhava as infidelidades conjugais do pai”
(Canton, 2009, p. 44).
Nesse sentido, segundo a autora, as
obras com suas características biomórficas das obras da artista apresentam um
corpo feminino que evoca Vicente/Vera como um elemento de metáfora e também
como forma de expressão da personagem, colocando os seus pensamentos nas roupas
que confecciona para os bonecos. Louise Bourgeois se converte em referência não
só visual na postura de Vera, mas também em seu processo de transformação
psíquica. E como escreve Sanchez:
(...) entre os pertences de Vera no início do filme
irradia três tipos de influências sobre a personagem e, portanto, no texto:
posturas da ioga, que serve como a apresentação de Vera; as esculturas que esta
desenvolve, coberta por pedaços de tecido de suas roupas rasgadas; e os
desenhos, juntamente com outras ilustrações. Vera pinta na parede a obra de
Bourgeois, que é nutriente de uma forma iconográfica de Vera em sua cela, de
acordo com uma intertextualidade, cuja operação notável em que o filme
incorpora parte desse processo bourgeoisiana (Sanchez, 2011, p. 78).
O fluxo das imagens no filme
prossegue e nota-se a transformação nas intenções do médico; ao mudar o seu
objetivo, o seu interesse será de esculpir o corpo e o rosto de Vera como uma
cópia da esposa morta, após um acidente de automóvel, ao mesmo tempo que a
personagem é a troca simbólica da sede de vingança do seu algoz, que
ironicamente acaba se transformando em objeto de obsessão. A reviravolta no
filme se dá quando o criador se apaixona por sua criatura e desenvolve entre
eles uma tensão sexual. O rosto de Vera lembra o rosto da mulher morta de
Ledgard e esta circunstância faz uma alusão ao filme Um corpo que cai (Vertigo, Alfred Hitchcock, 1959), na medida em
que Vera e Madeleine (Kim Novac) foram modeladas pelo desejo masculino como
Ledgard e Scottie (James Stewart), que esculpem o rosto da mulher amada
(Sanchez, 2011, p. 78).
Segundo o autor, Ledgard como
Scottie tinha a pretensão de esculpir o corpo dessas mulheres, imbuídos pela
vontade de recriar uma imagem sexual impossível, ou seja, deitar-se com a
falecida, que é pura necrofilia. A partir da beleza e da semelhança física da
esposa morta, Ledgard evoca a imagem feminina ideal e foi a forma encontrada
para lidar com a perda da mulher amada. A roupa, o cabelo e a maquiagem criam
um plano intertextual nos filmes de Almodóvar, que exploram um percurso
estético e narrativo, cujo ensejo do cirurgião se inscreve na potência do
desejo.
Nesse sentido, verifica-se também que as personagens, tanto de Almodóvar como de Hitchcock desenvolvem um sentimento que não faz distinção entre real e a imaginário, sendo o amor um mensageiro da loucura e da insanidade, que reina nos corações apaixonados.
O autor Egypto cita Wilson H. da
Silva: “É no limiar do desejo que reside o cinema de Pedro Almodóvar. São suas
linhas tortuosas, que delineiam os contornos de suas personagens, enredos e
filmes. É sobre o seu sedutor traçado que corre a narrativa do diretor (...)”
(Egypto, 2014, p. 109).
O filme Um corpo que cai revela o amor na sua forma sombria, que tem
igualmente a sua origem nas transformações corporais de Madeleine/Judite como
de Vicente/Vera. O tema das mulheres, que se debatem contra as forças que as
cercam e o modo como estas personagens se apresentam em seus filmes compõe um
quadro diverso de tipos, mas sem criar estereótipos. Dessa forma, a sua obra se
inscreve na perversão dos sentidos considerando que o ato de perverter é o ato
de inverter, de cometer extravagâncias e abandonar a ordem, a normalidade dos
costumes sociais.
As experiências humanas e
cotidianas de seus personagens se imbricam com as questões de gênero e
sexualidade. Vera é a metáfora da vida e simboliza as metamorfoses e o desejo é
o impulso necessário para provocar as mudanças, de ultrapassar as fronteiras,
os limites sociais, a fim de tomar posse das mudanças, numa emergência de uma
sensibilidade que provoca a reflexão da personagem e a sua relação com o corpo.
O diretor constrói em torno de um registro iconográfico das imagens da artista
francesa e das Vênus nuas e não esconde os infernos que as personagens
enfrentam no filme apontando para a existência uma alusão da corrupção do corpo
na violência, da iminência da morte.
Os personagens não apresentam
nenhum controle sobre si mesmos como mostra Zeca (Roberto Alamo) vestido de
tigre. O figurino de Gaultier é uma fantasia construída para o personagem, que
é filho da empregada e fugitivo da prisão. O encontro entre Zeca e Marília
(Marisa Paredes), a mãe trágica de Almodóvar em suas cenas contém toda a
explicação da origem familiar do médico e a sua relação com Zeca. A aparição deste
personagem rude e fantasiado de fera evoca o filme Maus hábitos (1983), em que um tigre é inserido na trama. Almodóvar
faz uma homenagem aos seus tempos de transgressão, escracho e alegria nos seus
primeiros filmes.
O figurino e a encenação parte da
atuação cinematográfica do filme como recursos: estéticos, técnico e éticos.
Desse modo, emerge uma empreitada investigativa de tais recursos, que
equacionam o enredo cinematográfico (www.posecourfrj.br – acesso em
13.05.2017).
Considerações finais
Almodóvar é apaixonado pelo cinema
e ao longo do tempo o seu imaginário ganhou contornos diversos em relação ao
tema gay, tanto quanto ao universo feminino. Em sua filmografia, a questão de
gênero é perpassada pela diversidade sexual e demonstra, por meio do humor e do
amor, a melhor arma contra os preconceitos e em relação às diferenças sexuais.
O esforço contínuo do diretor se
define em construir-se como autor/diretor cinematográfico, no plano da produção
fomentada pela sua criatividade, que marca o seu estilo e sua autenticidade em
seu cinema de mulheres e porque não dizer dos homens também, com a probabilidade
da personagem de se reinventar, de ser outra ou outro, se assim quiser e não há
delimitações.
A carta abertura de Almodóvar no
Festival de Cannes de 2017, durante a retrospectiva do seu trabalho composto
por vinte filmes, o diretor comenta que todos os seus filmes têm uma relação
íntima ou tangencial com sua filmografia e escreve:
Para mim o cinema, assistir filmes, falar sobre eles,
sonhar em vê-los, escrever sobre eles, escrevê-los, coletá-los, encontrá-los
através de lojas, lojas especializadas, plataformas digitais, lembrá-los, fazer
parte da minha vida, é algo real. É a experiência mais importante da minha vida
e a mais duradoura. Minha existência, muito cedo, girou em torno de filmes,
escrevendo e filmando (www.El Deseo.com – acesso em 21-08-2017).
Dessa forma, o diretor espanhol
vive como nós espectadores, seres intermediários entre a sombra e a opacidade
da vida real, entre as fantasias e ilusões, que o cinema nos permite viver como
uma experiência na pele de cada personagem independentemente de ser homem ou
mulher, porque nascemos demasiadamente humanos.
O que há em comum entre o diretor
espanhol e a artista francesa resumo nesta frase de Emil A. Gutheil, que
escreve que:
Em algumas compulsões à repetição, o paciente se
comporta como se quisesse consertar omissões e erros do passado. Repete seus
atos como se buscasse um estado de perfeição imaginário, mas nunca alcança a
condição desejada. Portanto, muitas vezes temos a impressão de que o paciente
realmente quer repetir é a sua vida inteira; quer vive-la de novo e, desta vez,
livre de culpa.
Assim sendo, Almodóvar e Bourgeois
precisavam de suas memórias como artefatos artísticos, que guardam para
reviverem suas lembranças e de compreender suas emoções com o retorno do desejo
proibido.
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Autora: Rosângela Canassa – psicóloga, escritora e palestrante na área de Arte e Psicologia
Email: rocanassa@uol.com.br
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