A minissérie TWIN PEAKS DE DAVID LYNCH
A narrativa labiríntica do cinema autoral de David Lynch em Twin Peaks apresentamos no título a palavra autoral, que sofreu várias modificações ao longo do tempo como em 1921, o cineasta Jean Epstein utilizou o termo “autor” em referência a cineastas que utilizavam este estilo de empregar a sua personalidade ao roteiro independentemente de onde estivesse. Serguei Eisenstein, outro cineasta havia comparado suas técnicas cinematográficas a procedimentos literários de escritores como Flaubert e Dickens.
Embora a ideia do culto ao autor tenha entrado
em voga em 1950, que já era antigo o termo, o culto ao autor foi criado na
Europa com os Cachiers du Cinéma, cuja revista se tornara um órgão-chave
para a propagação sobre o autorismo (STAM, 2013, p. 104).
A sétima arte conferira implicitamente aos
artistas cinematográficos o mesmo estatuto de escritores e pintores. E quanto a
David Lynch busca a sua singularidade no campo da mis-en-scène criativa
através do seu estilo, que impregna no filme. O cineasta se inseriu no contexto
vanguardista dos anos 1960 e se distinguiu como um artista excêntrico, com
trabalhos marcados pela busca de formas estranhas e pela ênfase em temas
insólitos, caso do seu primeiro longa, Eraserhead (1977), no qual
expandiu o seu caráter experimental dessa fase inicial e revelou uma
originalidade que lhe abriu espaço para trabalhar em produções mais comerciais
como O Homem Elefante (1980), Duna (1984), Coração
Selvagem (1990), Estrada Perdida (1997) e Uma História Real
(1999), entre outros filmes importantes.
O resultado são as histórias produzidas
para o cineasta, para o vídeo e que são reproduzidas na televisão e outras
mídias. A cinematografia autoral do cineasta americano David Lynch, se é que
ainda é possível empregar essa expressão, a sua narrativa labiríntica na
minissérie Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer (1999),
que estabelece conexões com o cinema noir. E em meio à monotonia asséptica de Twuin
Peaks, o cruzamento com a estética do filme noir dos anos de 1940 a 1950 em
Hollywood, as femmes fatales combina com o tema da corrupção.
Em muitos dos filmes no estilo noir, a
mulher faz par com a figura masculina e elas são vítimas do próprio parceiro.
Isso significa a mercantilização da mulher e a disposição de seu corpo para o
sexo ou para a troca tal como uma mercadoria. Mas ela também traz para o filme
a glamorização da personagem feminina, que prendia o espectador para sempre ao
se colocar como objeto de desejo e de contemplação no cinema de Hollywood.
Nesses filmes negros, os personagens masculinos frequentemente tornam-se
obcecadas por uma mulher, a femme fatale, que é muitas vezes a causa de sua
desgraça ou morte:
[...]
a femme fatale triunfa e reduz o parceiro a um imbecil condenado a morrer. A
personagem caracteriza-se por uma agressividade sexual frontal, ou seja, não é
só verbal, mas física, e elas têm tanto potencial para serem assassinas como os
homens. A personagem ao longo do filme e a sua revolta moral e a vontade de
fazer algo colocam na mesma posição, que muitos protagonistas masculinos de
filmes negros (DUNCAN, 2009, p. 133).
E se o personagem masculino se sente
humilhado e rejeitado pela femme fatale no estilo do filme noir, ela é punida,
assassinada, por sabotar o domínio patriarcal. A fórmula nesse filme dá vazão à
fantasia, que define como Eric Rohmer é: “fantasie sobre a aventura amorosa
ilícita, mas não passe ao ato, deixe a aventura permanecer uma fantasia privada
do que podia ter acontecido” (ZIZEK, 2018, p. 128).
A minissérie envolve duas forças
antagônicas na criação do mundo de Twin Peaks, sendo que uma delas é o
lado pavoroso dos crimes, das desconfianças e da violência, sendo este o seu
lado mais obscuro com tráfico de drogas e prostituição. O formato do fantasmático
em sua estética mostra a sua verdadeira face obscena e destrutiva. A criação de
mundo na minissérie conta com estradas escuras e mal iluminadas, com um
semáforo balançando ao vento; o campo, a serralheria e os bares são cenários
identificados, que funcionam como uma espécie de túnel por onde o espectador
entra para conhecer os crimes ainda não revelados, mas focados todo o tempo na
morte de Laura Palmer.
A outra face da narrativa, é que a cidade apresenta
uma vida idílica junto a cachoeiras, rios, florestas e montanhas. Os hotéis e restaurantes
são famosos e chama a atenção dos viajantes, que percorrem as estradas ao lado
da cidade. A trama narra sobre a morte da adolescente e 17 anos,
que envolve toda a comunidade. A realidade social e moralista, é como se Lynch
dissesse: ‘[...] é nisso que consiste a vida se atravessarmos a tela fantasmática,
que lhe confere uma falsa aura’” (ZIZEK, 2018, p. 133).
A aproximação desse lugar ilídico,
confronta-se com o contraditório, a corrupção, a prostituição e as drogas.
Nesse mundo imaginado, as coisas são distantes entre si mas se aproximam, e às
vezes mais parecem ser mais um aviso, do tipo “não remexa no que está oculto”
ou “não espreite o horror por toda a aparência que move esta cidade”, são os
dois lados dessa narrativa lynchiana.
As pessoas não são aquilo que parecem ser.
A vida cotidiana dos personagens daquela cidade se desintegra após a revelação
da morte de Laura Palmer. A protagonista da minissérie fica perdida em seu
masoquismo, quando deixou-se envolver com o jogo masculino de Leo (da picape
vermelha), a prostituição e as drogas.
Em Twin Peaks, a protagonista não é tão
evidente em seu modo de agir. Ela teme a repressão masculina e se esconde atrás
de sua insanidade mental. Enquanto a sua mãe (Grace Zabriskie) parece nada
perceber sobre o que está ocorrendo em sua própria casa, após o seu assassinato
e em razão da experiência traumática passa a ter visões de um índio em sua
casa, debaixo dos móveis, que a observa e a deixa apavorada.
As fantasias sexuais em torno de Laura não
se manifestam claramente, pois fica encobertas ou implícitas; somente nas cenas
da casa de Jake Caolha (Wendy Robie) essas situações são exploradas mais
fortemente. A minissérie mostra que essa protagonista se encontra enredada pela
manipulação masculina, do ponto de vista de uma fantasia masoquista do homem.
A câmera-caneta de Lynch apresenta ao
espectador um enfoque importante nas figuras masculinas, que são vistas como se
não registrassem a vida comum deles, mas somente as suas fantasias sexuais, que
funcionam como um escoamento de tanta repressão social vividas pelos habitantes
da cidade.
A estética autoral do cinema de Lynch se
expande não só no estilo cinematográfico, mas também nos personagens
masculinos, como no caso do psicopata, o seu espírito maligno se incorpora no
corpo de pai de Laura como Bob (Frank Silva). Lynch constrói as figuras do mal
como Bob, excessivas e enraivecidas.
O detetive Dale Cooper (Kyle MacLachian)
não é louco, mas suas noites são permeadas por sonhos com mensagens do tipo
charadas, que ele precisa esclarecer. Ele representa a figura do detetive, uma
das características do cinema noir, que funciona como um herói dos anos 1940
num submundo em que no âmago da violência e da corrupção, e que não existe o
politicamente correto. De acordo com Duncan (2009, p. 169), a estética do
cinema noir “[...] exibia a sociedade de uma perspectiva inferior, do ponto de
vista do perdedor, do criminoso, a pessoa sem sorte ou o trabalhador banal
[...]”.
Para ZIZEK (2018, p. 139):
Lynch
conserva em suas narrativas fílmicas uma cadeia de significados, [...] que
ressoa como real e que persiste e regressa sempre numa espécie de fórmula básica
que suspende e atravessa o tempo [...]. A cadeia de significados se resume à
matéria dos sonhos.
Segundo o autor, o diretor, além de
cineasta também é pintor e a sua criação de mundo em suas obras revelam as
pequenas cidades americanas, as casas, os bares, as pessoas e espaços públicos
ao registrar tudo ao redor e o também o registro dos sentimentos, sonhos e
contradições de seus personagens como nos seus filmes sempre apresentou a
vontade de mostrar um quadro em movimento, conforme ele escreveu que, havia um
quadro em andamento; um jardim à noite. Era uma tela muito sombria, com plantas
emergindo da escuridão: “De repente, tive a impressão de que as plantas se
moviam e cheguei até ouvir o vento (...). E comecei a pensar se o filme não
seria uma forma de pôr a pintura em movimento”.
Lynch apresenta ao espectador o mais
admirável instrumento conhecido para expressar o mundo dos sonhos, da emoção,
do instinto, que é o cinema. O mecanismo que cria a imagem cinematográfica é,
por seu próprio funcionamento, a forma de expressão humana que mais se
assemelha ao trabalho da mente durante o sono:
Um
filme parece ser uma imitação involuntária do sonho [...]. Como no sonho, as
imagens aparecem e desaparecem em dissoluções, e o tempo e o espaço se tornam
flexíveis, contraindo-se ou se expandindo à vontade. A ordem cronológica e a
duração relativa não correspondem mais à realidade (CARRIÈRE, 2006, p. 84).
Desse modo, a questão do real e da
verossimilhança se mistura com o universo onírico do mundo dos sonhos e dos desejos.
O cenário da cor do desejo lynchiano é a sala vermelha, que exibe um sofá e
algumas pessoas que não parecem se conhecer, que causa certo estranhamento no
público ao questionar se se trata de sonho, fantasia ou realidade. Enfim,
quando começa a fantasia e onde começa a realidade nesse filme do diretor? O
segredo de Lynch é de pontuar as fantasmagorias dos desejos recalcados de seus
personagens masculinos, através da violência como no cinema noir que inspirou o
diretor como um veículo eficaz para explorar, a violência masculina.
A casa vermelha no filme é outro locus do
espaço para a diversão, para o sexo, a bebida. É onde o personagem pode ter um
contato direto com sua versão mais primitiva, que parece condensar toda a
estrutura da narrativa do filme, enquanto a banda punk alemã toca as suas
músicas, que embala os personagens, que aparecem dançando num estágio de
alucinação ou de devaneio.
Twin Peaks funde improvisação numa
superfície de serenidade e uma ameaça insidiosa de terror nos seus melhores
momentos” (Dukes, 2016, p. 186). E tudo gira em torno do assassinato de Laura
no confuso dia a dia da cidade. O pássaro na gaiola da delegacia relembra o
filme Relíquia Macabra (1941), quando o detetive Sam Spade (Humphrey Bogart)
mostra o seu pássaro preto como uma metáfora das criaturas assassinadas, que
giram em torno dele. Em Twin Peaks, o pássaro que picou o corpo de Laura Palmer
em sua gaiola grita “Laura, Laura, Laura!”, como um aviso de que seu fim está
chegando.
Outro acontecimento importante na trama
ocorre quando outra garota, encontrada vagando na linha do trem da cidade,
entra em coma após ser internada num hospital. Ninguém sabe o que a deixou
transtornada e com perda de memória. Portanto, nesse confronto constante entre
a fantasia e a realidade, Lynch decompõe o sentido de realidade, substituída
pela fantasia que parece imperar como uma fuga da vida real dos personagens.
Considerações finais,
Nesse filme de terror psicológico e de
estranhamento é a prova da estética cinematográfica de David Lynch, que utiliza
elementos do onírico, do cotidiano que se passa em lugares inusitados, que leva
o espectador a realizar uma imersão no lado escuro da alma humana em Twuin
Peaks. As forças que nela operam são obscuras e arcaicas, em que “o fogo os
acompanha” (Fire Walk with Me), conforme o título em inglês do filme.
O universo lynchiano se apresenta de modo
intra e intermediático e que possui uma estrutura de segmentos narrativos, que
se entrelaçam formando uma multitrama, mas que permite o acompanhamento de
linhas narrativas singulares; além disso, a série apresenta uma relação
intermidiática por meio de suas expansões narrativas, que alimentam a
voracidade dos públicos por informações adicionais do universo ficcional da
série.
Portanto, na obra de Lynch tudo é
explícito como os encontros sexuais, incesto, sadomasoquismo. O desejo de viver
uma fantasia originada num universo ficcional, a minissérie promete satisfazer
o público de um modo completo, mesmo que antes da internet o cineasta tornou possível.
E a imersão do diretor em sua própria obra aponta para sua
autorreferencialidade, cujo movimento é o de voltar-se sobre si, gerando em
consequência a recepção metarreflexiva por parte do público.
Lynch ao descrever a cena parece narrar o
universo onírico, que é um tema presente em suas obras, que confunde o
espectador entre o que é real e o que é ficção. A iluminação também contribuiu
para esta atmosfera de sonho com luzes projetas apenas em alguns lugares e abajures
que pontuam um lugar ou então, o contraste entre o colorido e o preto e branco
como nas cenas que parecem um devaneio.
As
características principais deste diretor são: a quebra da linearidade como se fosse
um sonho; estranheza entre elementos entre si; sentimentos conturbados dos
personagens que rompem com as barreiras sociais sendo atos libertadores numa
linha tênue entre a normalidade e a loucura.
A narrativa seriada possui o ritmo próprio
da literatura, com rupturas, sensações/experiências (recurso para atrair para a
imersão), realidade virtual, continuidade (que não esquece da obra original).
As subjetividades de uma realidade e do
cotidiano é uma tendência do cinema contemporâneo, embora em Lynch o real é
mais que real e assume algo de fantasmagórico, conforme o jardim colorido
excessivo do seu filme Velvet (1987), cujas cores são mais que reais. As
cenas parecem um quadro e cujo espaço vão além da tela.
O diretor também utiliza os ângulos de
representação numa alusão ao enquadramento cinematográfico, como se o
personagem está dentro de um quadro como uma possibilita de realização de uma
montagem. A linguagem cinematográfica de Lynch é peculiar no sentido do
estranhamento, do misticismo, da natureza e do mistério, no campo da narrativa
contemporânea e midiática.
Além disso, o diretor se estende para além
das referências aos próprios filmes e estabelece as correlações simbólicas
entre pintura e cinema, as intersecções com o universo mais amplo da cultura
contemporânea e musical em suas diversas formas de narrar. O cinema contemporâneo
é obrigado a recorrer a ligações ou transposições plásticas e psicológicas,
tanto visuais quanto sonoras, destinadas a construir as articulações do enredo.
Autora: Rosângela Canassa - graduada em Psicologia Clínica (Univ. São Marcos), mestre em Artes Visuais (Instituto de Artes/UNESP), doutorado na área de Educação, Artes e História da Cultura (Universidade Presbiteriana Mackenzie) e especialização na UFSCAR em arte, educação e mídia. Integrante do LABDIC-Laboratório de Pesquisa em Identidade e Diversidade Cultural do Instituto de Artes da UNESP (CNPq). Atua como psicóloga clínica em São Paulo. Email: rocanassa@uol.com.br
Referência bibliográfica:
CARRIÉRE. Jean. A linguagem secreta do
cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
DUNCAN, Paul. Film Noir. São Paulo:
Editora Taschen, 2009.
DUKES, Brad. Twin Peaks: arquivos e
memórias. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2016.
STAM, Robert. Introdução à teoria do
cinema. 5ª. edição. Campinas/SP: Papirus, 2013.
TWIN PEAKS: os últimos dias de Laura
Palmer. Direção: David Lynch. Estados Unidos: New Line
Cinema, 1990-91. 1 DVD (135 min.), son., color.
ZIZEK, Slavoj. Lacrimae Rerun – ensaios
sobre cinema moderno. 2ª. edição. São Paulo: Boitempo, 2018.
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