Branca de Neve e os contos de fadas na contemporâneidade



Os contos de fadas transcendem o tempo e o espaço como a história Branca de Neve dos irmãos Grimm, que foi escrita no século XIX. Segundo estudiosos, foi a partir desses autores que os contos de fadas assumiram a sua roupagem atual e as suas versões serviram como base para que as histórias fossem contadas, reescritas, encenadas e filmadas.

Wilhelm e Jacob Grimm (pintura de Elisabeth Jerichau-Baumann - 1856)


O plano inicial de Jacob e Wilheilm Grimm era ouvir histórias narradas por pessoas simples e fixá-las no papel, antes que a urbanização e a industrialização viessem a modificá-las irreversivelmente. (Merege, 2010, p. 55). Na metade do século XX, alguns contos de fadas começaram a ser divulgadas pelo cinema por meio de versões como do desenho animado de Branca de Neve (1937) da Walt Disney.

Branca de Neve (1937) da Walt Disney


A abordagem da Psicologia Analítica e a interpretação dos contos baseia-se na sua estrutura simbólica. Porém, cada conto pode ser apreendido como um produto de uma cultura, de seu folclore, seus costumes e o tempo em se passa a história. Dessa forma podem-se atribuir inúmeros significados às histórias e aqui as análises dos contos estão ligadas aos estudos de Carl Gustav Jung e de Marie von Franz.

Bruxa


O bizarro e o belo na versão cinematográfica

 do conto de Branca de Neve do diretor Pablo Berger





O filme de Pablo Berger (2012) é marcado pelo humor e pelo estranhamento, onde o belo e o bizarro coexistem dentro de uma mesma estética. A tentativa do cineasta é de substituir os diálogos pelo modo silencioso e mostrar como é inútil representar o mundo como ele é, afirmando que a imagem deveria ser uma projeção do conteúdo espiritual do homem. Segundo o cineasta:
O bizarro e o belo convivem dentro de uma mesma concepção estética. Branca de Neve é um grande sonho que envolve o espectador, sem necessariamente apresentar sentido lógico. Encará-lo como um conto de fadas encantado, que atrai pela beleza ou como um pesadelo, que causa certa perturbação, é escolha do público. É um filme difícil de ser definido. Se não apresenta um grande roteiro, com certeza ganha o espectador que enfeitiça seu o olhar. (entrevista Pancinema - acesso google: 01/07/2013)

O impacto visual do filme  espelha também o universo dos sonhos e dos pesadelos, que não são influenciados por qualquer intenção consciente. Mas, isso não impede que atinjam além do consciente, intuitivamente, a pessoa pressente que ali se espalham acontecimentos que fazem eco com o seu ser. (Mednicoff, 2008, p. 146)

Angela Molina e Sofia Oria


A primeira parte do filme é de um verdadeiro encantamento de um ambiente de contos de fadas. As cenas são marcadas pela delicadeza dos gestos da menina quando dança, o carinho da avó (Angela Molina) e os detalhes dos móveis da casa e o ato de cozinhar. Esses detalhes se alternam com a infância sofrida da pequena Carmen (Sofía Oria a personagem infantil)

Carmencita (Sofía Oria) e seu galo Pepe


O pai da menina é um toureiro famoso de Sevilha, que sofre um acidente na arena contra um touro e perde a fala e os movimentos do corpo. O toureiro moribundo não quis reconhecer a filha quando ela nasceu e a culpa pela morte da mãe biológica.

Antonio Villalta (Daniel G. Cacho)


Encarna (Maribel Verdú) é a enfermeira cruel, que se casa com pai de Branca. A inveja da beleza da incomoda e o maus tratos com a enteada revelam o seu perfil de bruxa má. As bruxas nos contos de fadas representam a maldade, a inveja, a decadência física, a infelicidade, etc. A sua personificação masculina é do animus (parte masculina na mulher) e seus  aspectos negativos.

Encarna (Maribel Verdú)


Os arquétipos das imagens femininas ou da Grande Mãe, segundo Jung, apontam para o feminino criador do mundo e da fertilidade. A estatueta que mede aproximadamente 11 centímetros é chamada de Vênus de Willendorf foi descoberta na Áustria e é datada entre os anos de 25 a 20 mil anos a.C.

Vênus de Willendorf


Nos contos de fadas, as mães excessivamente boas são excluídas das histórias, porque elas tendem a paralisar seus filhos impedindo seu desenvolvimento e autonomia. É por essa razão em muitos contos as mães boazinhas morrem no início deixando seus filhos e filhas sozinhos no mundo, ou melhor, nas mãos de uma madrasta terrível. Após a morte de sua babá, Branca de Neve é enviada à mansão onde mora o pai, que ela ainda não conhece e também a madrasta. Encarna (Maribel Verdú) corta os longos cabelos da menina, o que pode simbolizar o primeiro contato entre elas e ao mesmo tempo, o corte de um possível elo de ligação entre as duas. 

A madrasta Encarna (Maribel Verdú)


Nos contos de fadas é comum a figura do caçador, que eram nobres na origem, afinal a caça era um atributo da aristocracia. Eles são importantes nos contos de fadas porque são protetores, sendo que caçar animais é enfrentar o perigo da  floresta. A caçadora de animais no filme é a própria madrasta que assume também essa figura, mas ela não é nada benfeitora



Branca de Neve poderia sucumbir em auto piedade, mas ela lança mão da coragem e conquista o amor do pai. No conto original existe a presença do príncipe que vem salvá-la e representa a força masculina da psique feminina (o seu animus), o poder da ação. Mas, no filme espanhol, o desafio é essencial para a heroína, que é a prova da qual deve enfrentar na figura da madrasta.



Depois de ser expulsa do castelo e sofrer uma tentativa de assassinato, Branca de Neve encontra os seis (não sete) anões, que a ajudarão em seu crescimento pessoal tornando o seu lado feminino mais forte. O grupo de homens com os quais a protagonista passa a conviver indica um elemento coletivo e os anões a incentivam a buscar o caminho da profissão do pai de toureiro.

Seis anões


Na versão espanhola a personagem conquista a sua autonomia feminina e não se conforma com o próprio destino da perda de sua identidade (a perda da memória). Mas, não basta à heroína se livrar da bruxa, ela necessita enfrentar a morte da infância e passar pela fase do adormecimento (o que faz com que os príncipes se apaixonam por ela e a sua passividade).

Carmen / Branca de Neve adulta (Inma Cuesta) 


A madrasta na sua forma arquetípica lança sobre Branca de Neve a maldição do sono profundo, que é a morte. A madrasta quer incorporar os pedaços do corpo de Branca de Neve como o seu fígado e o coração. Comer seus órgãos é como se ela pudesse ser a própria enteada.


Marilú Verdú



O animus negativo da bruxa nos leva ao tema do sacrifício de uma virgem, na medida em que para se chegar num equilíbrio, Branca de Neve deve ser submetida aos seus domínios. Segundo Jung, ao reconhecemos tais manifestações no feminino através de atitudes violentas, masculinizadas, frias e calculistas estas características trazem solidão às mulheres e tomam a forma de um espírito destrutivo e diabólico. A ideia à qual Jung se referia nesse processo é que o logos da mulher seja ordenado e que ela possa conviver em harmonia com seu animus, para tornar-se consciente dos processos básicos de desenvolvimento da sua posição objetiva, tanto cultural quanto pessoal. (Jung, 1977, p. 26)



O lado positivo do animus de Branca personifica a coragem, a honestidade e isto só é possível se a personagem tiver a coragem e a largueza de espírito interior, que é capaz de permitir a força de suas convicções. O seu sono letárgico não pode impedí-la de passar pelo ritual de passagem da infância à adolescência, que a despertará para a sexualidade.

Segundo Cecília De Nichile: Ao contrário do clássico da Disney, a Branca de Neve de Berger não mostra uma futura princesa inofensiva e protegida pelos anões de bom coração. A moça é valente e carrega no sangue a vocação de toureira, que herdou de seu pai (...). E a madrasta parece mais preocupada em aparecer nas revistas de magazine do que competir em termos de beleza com sua enteada. A história de Branca de Neve se repete, mas com tênues toques de ironia e crítica social ao mostra dentre os anões um transexual, que se veste como uma senhora indefesa. (Publicado em 1 de julho de 2013 por Cecília De Nichile)

Inma Cuesta

O destino da heroína

Os personagem nos contos de fadas geralmente tornam-se ricos e acompanhados de uma ascensão social. Porém em outros contos, quando os heróis já são príncipes e princesas (e ricos), a recompensa seria de ordem espiritual e existencial: “o herói ou a heroína encontra o amor, transcende uma condição negativa e se purifica por meio das provas enfrentadas”. (Merege, 2010, p. 9)
No filme de Berger, a personagem adquire a sua autonomia e não se conforma com o próprio destino da perda de sua identidade (simbolizado pela perda memória) e de ser despojada de seus direitos de morar na própria casa passando a viver num mundo hostil como na floresta. A madrasta é derrotada pelo touro que não venceu Branca de Neve na arena e o seu espelho-homem (como diz Jung) se estilhaça e ela perde o seu poder e morre, que simboliza o seu castigo. A linguagem dos contos de fadas dentro de uma perspectiva junguiana e dos seus arquétipos como a da bruxa, nos permite compreender as interferências dessas imagens primordiais, bem como, o animus e sua relação com o princípio do feminino na personagem de Branca de Neve.

O mundo dos contos de fadas nos levam ao nosso universo infantil, do inconsciente coletivo e dos sonhos. O sonho é a melhor expressão que existe para os acontecimentos interiores e nesse sentido, podemos dizer “preste atenção nos seus sonhos”, porque ele diz tudo que possa ser dito. Segundo Marie von Franz: “embora o indivíduo possa estar mais fortemente afetado por sua história pessoal, a sua reação é humana e universal e assim deve ser considerada, e não somente como algo subjetivo (...)”. (Franz, 2018, p. 238)


Inma Cuesta

O espelho é a porta do inferno

Apesar de morta, Branca de Neve continua corada e bela, aparentando estar apenas adormecida, o que leva os anões à colocarem na esquife de vidro para ser admirada. Na cultura medieval a beleza feminina estava ligada a sedução, ao maligno como uma influência do demônio. E o espelho era a porta do inferno.
Portanto, este fato levou ao preconceito contra as mulheres bonitas. E a história do cinema e também dos contos de fadas construíram um perfil feminino de submissão e marginalidade.
A cultura e a sociedade moderna como uma bruxa malvada percebe na mulher a sua força e sua beleza e tenta impedir a sua transformação, a sua coragem e determinação retendo-a no seu silêncio e na sua dormência, num tempo em que o pai/marido com o seu poder comandavam o seu destino. Agora é o momento de mudar isso.






Referência bibliográfica

Jung, Carl Gustav. O homem e os símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.


Ficha técnica do filme
Título: Branca de Neve
País, ano: 2012, Espanha, Bélgica e França
Diretor: Pablo Berger
Atrizes principais: Inma Cuesta e Maribel Verdú


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