OS ROTEIRTAS LUIS BUÑUEL E PEDRO ALMODÓVAR: A INTERTEXTUALIDADE E O FILME DENTRO DO FILME

Luís Buñuel e Pedro Almodóvar em busca dos obscuros objetos do desejo e a subjetividade feminina no cinema



Pedro Almodóvar (1949), após os anos de 1980, a sua estética cinematográfica foi se consolidando com a junção de vários elementos, tais como as construções melodramáticas em suas narrativas, o enfoque nas personagens femininas e a estética pop, que exerceu um efeito profundo no cinema espanhol contemporâneo.

Em Abraços Partidos (2009), o diretor constrói o filme a partir da  justaposição da comédia e do melodrama num jogo de estilos, considerando que filme é basicamente intenso e dramático. A narrativa é sobre a vida do presente e do passado da personagem Lena (Penélope Cruz), que consegue um emprego como atriz e se apaixona pelo cineasta, porém quem produz o filme é o próprio marido. Ernesto Martel (José Luis Gómez) ao descobrir a vida dupla de sua mulher ele encomenda a sua morte.



A leitora de lábios e Ernesto Martel em Abraços Partidos


Nesse filme, a morte da heroína serve de mote para o diretor desenvolver o tema do amor e como esse sentimento se expressa em suas personagens. Segundo Strauss em entrevista com Almodóvar ele escreve: “Estar ligado ao Outro, o reencontro a dois, uma fusão simultaneamente amorosa e amniótica (...), é o âmago da questão que todas as personagens de Almodóvar carregam na indiferença, no prazer ou na dor". (Strauss, 2008, p. 11)

A experiência da dor não é transformadora, na medida em que seus personagens continuam amando demais e o desejo arbitra as suas vidas, numa existência livre de limites. O gozo é o princípio e o fim. O trinfo da morte e da dor andam de mãos dadas em um mundo imaginado.

Esse amor louco se manifesta de forma egoísta e violenta, cuja experiência é explosiva, desmesurada, que pode aquecer mas também pode destruir. Em Matador ( 1999 ) o comportamento do toureiro e os assassinatos das mulheres, que ele confessa tem como base as forças mais selvagens e instintivas do personagem e que se escondem na imagem de um professor. (Canassa, 2018, p. 73)

Cena do filme Matador (1999)



O amor em forma de revolta e do inconformismo também surge em Àta-me (1990), os personagens se rebelarem como Ricky (Antonio Bandeiras), que rapta uma mulher para um pacto matrimonial, enquanto na parede do seu quarto Jesus e Maria são compostos numa gravura imitando a estética warholiana pop, que observa o casal fazendo amor. O personagem é a síntese do amor bandido, do amor louco, sem moralismos e o fim justifica os meios.

Cena do filme Ata-me (1990)












Segundo Morin:

"O homem manifesta uma afetividade extrema, convulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mudanças brutais de humor; ele carrega consigo uma fonte permanente de delírio; ele crê na virtude de sacrifícios sangrentos; ele dá corpo, existência e poder a mitos e deuses da sua imaginação." (Morin, 2011, p. 7)

Segundo o autor, a violência, a impetuosidade e orgulho ferido levam o personagem anti-heroico a permanecer longe das epopeias homéricas e seus heróis, que salvavam as mulheres amadas. Essa condição do amor louco é fundamental nos roteiros dos dois diretores ao colocar o homem à mercê de suas paixões e como consequência a violência e a morte.

Em Abraços Partidos, o ciúme doentio do milionário provocou a morte da esposa e como dizem os surrealistas: "O amour fou  instala um ponto de vista crítico e traz à luz uma realidade na forma do sarcasmo e do grotesco: (...) é onde triunfa o incondicionado desejo erótico na sua declamada provocação. O recalcamento emerge, flutua; o objeto do desejo revela-se, impudico, chocante, imoral, na ausência de qualquer controle”. (Uzzani, 2011, p. 145)

Lena (Penélope Cruz) e Ernesto Martel (José Luis Gómez)


A ideia surrealista do amor, o que realmente interessa é o desejo concreto e egoísta, que movimenta as suas vidas. A paixão, o erotismo e a morte exercem um fascínio e ao mesmo tempo um terror, porque os sentimentos frustrados interferem na percepção do mundo de cada personagem. E segundo Buñuel citado por Carrière:

"Todo o filme parece dizer que não há diferença, que a vida imaginária é tão real quanto a outra, e que a vida que tomamos como real pode a qualquer momento se tornar inverossímil (...)." (Carrière, 2008, p. 89)

Francisco Galván de Montemayor (Arturo de Córdova) em O Alucinado (1953)


Os jogos intertextuais em Abraços Partidos

O filme dentro do filme compreende-se àqueles filmes que explicitam o discurso cinematográfico com o recurso da metalinguagem e é inserido como parte fundamental na estrutura da obra como, por exemplo, Chicas y Maletas com seus trechos inseridos em Abraços Partidos. Chicas y Maletas também é construído a partir do spin-off da A vereadora antropófoga (2009) e com seus bolinhos e o uso da cocaína funciona como uma paródia de Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988).


Cena de Chicas Y Maletas (2009)


O remake de Mulheres...  é uma reinterpretação da sua ‘obra antiga’ e que abriga uma manifestação de liberdade no seu estilo em Abraços Partidos. E o  empréstimo informal de autocitação é do cinema pós-moderno, que reverencia a releitura, a reinterpretação e a reciclagem; o diretor aproveita e desenvolve o seu próprio movimento narrativo através de um outro filme no outro, num olhar nostálgico dirigido ao passado.

Cena de Mulheres (1988)


O cineasta da contracultura autoriza todas as suas audácias que incrementa o seu estilo artístico criado a partir da Movida, do universo Pop e de alguns elementos do surrealismo no filme. Os valores estéticos privilegiam a feitura da obra de suas partes, que se constitui numa poética, conforme a teoria de Oscar Calabrese em seu livro A Idade Neobarroca (1987).


Mateo Blanco / Harry Caine (Lluís Homar) e Lena (Penélope Cruz)

A intertextualidade decorrente de sua proposta nos filmes se baseia nas referências de obras de arte, as citações do cinema, tanto quanto utiliza os seus próprios filmes ao mencioná-los em seus próprios filmes. Dessa forma, a produção de cada filme se torna um desafio na construção da narrativa, bem como, para a anexação de novos intertextos, por isso as obras literárias, as pinturas, o teatro, a dança, os spots publicitários, cada elemento intertextual constitui um exercício de teoria e pesquisa prática com imagens em sua formalização em seu cinema.

Os enamorados (1928) de René Magritte



Segundo Peter W. Evans:

"O diretor confia na habilidade do espectador de reconhecer referências, conduzindo-o a uma espécie de prazeroso teste da história do cinema e da arte à medida que o filme se desenrola. Em níveis mais profundos, entretanto, a colagem de referências do filme reforça o tema pós-modernista de Almodóvar sobre a natureza provisória e artificial do significado". (Evans, 1999, p. 23)

Conforme explica o professor de estudos hispânicos da Universidade de Londres, a colagem de referências de filmes, a autocitação, a colagem que emana do estudo de um outro elemento chave para a escrita da narrativa, as imagens são como metáforas como a obra de René Magritte (Os enamorados, 1928) numa cena em que Lena e Ernesto passam os dias em Ibiza, o quadro remete ao espectador uma sensação de sufocamento da personagem em relação ao marido quando eles se beijam sob os lençóis.

E nesse jogo de variações temáticas e intertextuais em Abraços Partidos, ocorre uma alusão ao filme de Buñuel A bela da tarde (1967). O passado de Lena como prostituta eventual e com o codnome de Severine, alude a personagem de Catherine Deneuve. Numa cena, Lena surge nas filmagens de Chicas y Maletas numa cadeira de rodas com roupa preta e com óculos escuros, que alude ao marido cego de Severine, semelhante a cegueira de Harry Caine, amante de Lena, após o acidente.

O figurino da belle de jour encobre os seus desejos mais obscuros da personagem, que talvez ela mesma não consiga perceber:

"Contrastando com o seu papel de prostituta no filme A Bela da Tarde (1967), de Luis Buñuel, a atriz francesa Catherine Deneuve usa roupas de aparente circunspecção, apesar de o roteiro incluir dominação, sadomasoquismo e servidão. A sexualidade é velada, não explícita, e é apenas sugerida pelo guarda-roupa da atriz, criado por Yves S. Laurent (...)". (Fogg, 2015, p. 195

Séverine (Catherine Deneuve) em A Bela da Tarde (1967)


Buñuel aceitou rodar a adaptação do livro de Joseph Kessel e como resultado,  o seu filme A Bela da tarde e a questão feminina, o importante é o que ela desperta nos homens. As mulheres de Buñuel desestabilizam o ambiente equilibrado em que vivem, mas este equilíbrio é com base no sistema patriarcal. E até o mais convencional filme do diretor revela uma justaposição entre o desejo inconsistente, que se introduz como numa fina camada nas relações sociais e acaba denunciando a hipocrisia da moral e dos bons costumes de uma sociedade patriarcal.


Pierre (Jean Sorel) e Séverine (Catherine Deneuve)


A personagem bunuelana esconde do marido a sua vida dupla ao se prostituir no bordel de madame Anaís. A jovem infeliz com o casamento só consegue encontrar o prazer em um discreto bordel, onde passa as tardes realizando fantasias sexuais com clientes.


Séverine e o vendedor de doces

Ao justapor as imagens do real com as do universo onírico causa um efeito desconcertante no filme Buñuel, que  reconstrói as fantasias de sua personagem. Apesar de seus sonhos demonstrarem que estão carregados de culpa e remorsos, ela transporta para o sonho os seus desejos ocultos. E ao abolir a fronteira entre o real e o sonho, Buñuel introduz o universo delirante da personagem.

Sempre belas


Em Abraços Partidos entre Pepas, Pinas, Séverines, Madalenas, Lenas e Judits, entre atrizes, prostitutas e sonhadoras,  as personagens de Almodóvar se destacam pela sua coragem de encarar as suas revoltas, que ameaçam o conformismo da vida doméstica. E nem porisso, elas deixam de amar e de sofrer com um abraço partido.

As estruturas patriarcais são os pilares que definem os limites da mulher do cinema clássico e Kaplan salienta que: "(...) a mulher que se submete à Lei Paterna é a que é moralmente admirável. A resistência, quase que por definição, quando vista do ponto de vista masculino, exige que a mulher se torne maléfica". (Kaplan, 1995, p. 104)

Judit (Blanca Portillo), Mateo / Harry e o filho

Segundo a autora, a mulher que não se ajusta ao sistema patriarcal é considerada fria, cruel e manipuladora. Talvez seja porque, a exaltação da paixão tanto no melodrama de Almodóvar como nos filmes de Buñuel, o desejos e suas consequências não são sintomas de fraqueza, mas sim de vida.
O êxtase, vivido como convulsões, na qual o prazer é possível se mistura com a dor e sem a preocupação com a sua desintegração total como a morte.
     
Almodóvar e Buñuel não poderiam ser diferentes, no sentido provocativo. Eles são sobreviventes do contexto histórico e cultural de seu país e substituem o herói pelo anti-herói, que busca o obscuro objeto do desejo, que existe somente em suas fantasias. E essa existência insubmissa ao controle incentiva os extremos. O erotismo, a violência e a morte, sem pretender extirpar os sentimentos amorosos nas experiências humanas de cada personagem, as paixões são as forças anárquicas que compõem a realidade em cada filme dos diretores.



Referência bibliográfica:

ALMODÓVAR, Pedro. Conversas com Almodóvar. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
CANASSA, Rosângela D. As mulheres no cinema de Pedro Almodóvar Caballero e a reinvenção do melodrama hollywoodiano. Tese de doutorado em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2018. 
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
EVANS, Peter William. Mulheres à beira de um ataque de nervos. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
FARTHING, Stephen. 501 grandes artistas. Rio de Janeiro, Sextante, 2009.
FOGG, Marnie. Vestidos eternos. São Paulo: Publifolha, 2015.
KYROU, Ado. Le Surrealism au Cinema. Paris: Ed. Arcanes, 1953.
MOLES, Abraham Antonie. O Kistch: a arte da felicidade. São Paulo: Perspectiva, 2012.
MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível: a decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Iluminuras, 2012.
RODRIGUES, Ana Lucilia. Pedro Almodóvar e a feminilidade. São Paulo: Escuta, 2008.
STRAUSS, Frédéric. Conversas com Almodóvar. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
UZZANI, Giovanna. Pocket visual encyclopedia: Surrealismo. Florença/Itália: Ed. Scala, 2011.


Consulta a sites:
El Deseo – acesso em 20-09-2018
Faroartesepsicologia.blogspot.com.br – acesso 20-09-2018 – análise do filme Abraços partidos



Ficha técnica dos filmes:
Título: Abraços Partidos
Direção: Pedro Almodóvar
Ano: 2009
País: Espanha
Elenco: Penélope Cruz (Lena), Lluis Homar (Mateo Blanco/Harry Caine), Blanca Portilho (Judit), Lola Dueñas (secretária), Angela Molina (mãe de Lena), Carmen Madi (amiga de Lena), Rossy de Palma (Julieta)


Título: Belle de Jour - A Bela da Tarde
Diretor: Luis Buñuel e o roteirista Jean-Claude Carrière.
Ano: 1967
País: França
Elenco: Catherine Deneuve, Jean Sorel, Michel Piccoli, Geneviève Page, Pierre Clémenti, Françoise Fabian e Macha Meril.

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