Decodificando o cinema - A Jornada do Herói (monomito) em Moana




A Jornada do Herói ou monomito é uma estrutura que dita as diretrizes de inúmeros roteiros cinematográficos, entre eles Star Wars, O Senhor dos Anéis, Matrix entre outros, só para citar os que utilizam a estrutura do monomito de forma quase que literal. Não há obra de ação ou aventura que não utilize ao menos alguns dos passos da Jornada do Herói e Moana: Um Mar de Aventuras, animação da Disney de 2016, não é exceção.
O monomito é um conceito de jornada cíclica descrita pelo antropólogo Joseph Campbell no livro The Hero with a Thousand Faces (O Herói de Mil Faces). Campbell observou a repetição do padrão em diversas narrativas das mais diversas mitologias, tais como nas histórias de Jesus Cristo, Buda, Marco Polo e Moisés.
Na teoria de Campbell, a Jornada do Herói apresenta 18 passos divididos em 3 estágios. No cinema, o mais usual é encontrarmos a simplificação de 12 passos desenvolvida pelo roteirista Christopher Vogler no livro The Writer's Journey: Mythic Structure For Writers (A Jornada do Escritor: Estrutura Mítica para Roteiristas). Os passos descritos são os seguintes:

1 - Mundo Comum
O herói é um humano normal, vivendo no mundo ordinário. Ele é como eu ou você, aparentemente sem nada especial. Esse início pode parecer inócuo à primeira vista, mas faz com que a audiência imediatamente identifique-se com o herói.

2 - Chamado da Aventura
Algo acontece no mundo do herói que o obriga a sair da zona de conforto: uma ameaça, a perda de alguém querido, até mesmo a sensação de que algo está muito errado com a sua própria realidade.

 3 - Recusa do Chamado
O herói tenta fazer algo ou ao menos se predispõe a tentar mudar a sua realidade, mas por medo ou por incapacidade não consegue. Nesse momento ele se acha aquém da tarefa e decide conformar-se com a sua vida ordinária.

4 - Encontro com o Mentor
Um mestre adota o herói e mostra a ele o seu valor e a importância da sua missão. O mentor pode treinar o aventureiro, dar um objeto sagrada ou mágico ou simplesmente ajudar o herói a aumentar a sua auto estima, dessa forma tornando-o mais seguro de si.
Há também a possibilidade do mentor ser de alguma forma sobrenatural, ajudando o herói de formas fantásticas.

5 - Cruzando o Limite
O herói consegue, depois de algum esforço, deixar o mundo ordinário e entrar em um mundo mágico ou desconhecido, onde os verdadeiros desafios da sua aventura irão acontecer.

6 - Testes, Aliados e Inimigos
Fora do seu mundo e ainda aprendendo como ser um herói, o aventureiro passa por testes, enfrenta inimigos e conquista aliados. Normalmente ele convence os novos companheiros de aventura da importância da sua missão.

7 - Aproximação
Os êxitos do herói acontecem e os desafios são cada vez mais complicados. Triunfar sobre os inimigos e ultrapassar obstáculo antes julgados intransponíveis tornam o herói cada vez mais confiante de que conseguirá cumprir o objetivo de sua missão.

8 - Provação
O herói passa pelo teste mais difícil até agora e fracassa. Tudo parece perdido e normalmente há uma morte simbólica para que ele possa renascer de uma forma mais evoluída.

9 - Recompensa
Após derrotar o inimigo ou alcançar o seu objetivo, o herói alcança um novo estado de existência, mais forte, mais sábio. Ele consegue o elixir ou o tesouro que era o objetivo da aventura e se prepara para voltar para o mundo ordinário, a sua casa.

10 - O Caminho de Volta
Voltando para a casa com o elixir, o herói enfrenta um último grande desafio ou um dilema: alcançar seu objetivo pessoal ou doar-se para o bem maior e comum?

11 - Ressurreição
O clímax da história, onde o herói vai enfrentar a morte e aliados irão morrer ou sofrer. Após derrotar a ameaça suprema, o herói renasce como uma pessoa diferente daquela do começo da aventura.

12 - Regresso com o Elixir
O herói retorna para a casa com o elixir. Ele não é a mais a mesma pessoa que deixou o lar, podendo ter se tornado mais sábio ou até mesmo mais amargo. Os resultados do seus feitos podem ser palpáveis ou metafóricos, mas o seu mundo comum foi de alguma forma transformado definitivamente.



A Jornada do Herói em Moana

ATENÇÃO, SPOILERS!


1 - Mundo Comum



Moana vive feliz em sua ilha, sem grandes preocupações. Algumas dicas são dadas de que há algo especial reservado para ela, mas ela habita um mundo comum. A garota é filha do chefe dos nativos e está destinada a liderar seu povo. A ascendência nobre não é regra para a construção do herói mas também não é algo raro: Luke Skywalker era filho de Darth Vader em Star Wars, Frodo era sobrinho de Bilbo em O Senhor dos Anéis e Jesus Cristo era o filho de Deus segundo a mitologia cristã.


2 - Chamado da Aventura



Desde a mais tenra idade Moana sente a necessidade de explorar o mundo. A degradação da natureza da ilha onde ela e seu povo vivem é o chamado para que ela busque a solução – o elixir – através de uma aventura além dos lugares familiares, rumo ao desconhecido.


3 - Recusa do Chamado



Depois da primeira tentativa e consequente fracasso de se aventurar no mar aberto, Moana decide desistir, achando-se incapaz de realizar sozinha tal façanha.


4 - Encontro com o Mentor



A avó de Moana, Tala, sempre encorajou a jovem mulher a perseguir seus sonhos e liderar o seu povo rumo ao futuro. Nota-se que até agora todos os personagens que levam a trama adiante são mulheres – Moana, Tala e até a mãe de Moana, Sina, que discretamente ajuda a garota a iniciar a sua aventura. O principal personagem masculino, o pai de Moana, Chefe Tui, tenta de todas as formas impedir a progressão dos fatos em nome da segurança.
Após a morte de Tala, ela retorna como uma arraia fantasmagórica, mentora de Moana que a guiará por toda a sua aventura.


5 - Cruzando o Limite



Considero que Moana cruza o limite ou o primeiro portal quando enfrenta a tempestade em alto mar e chega à ilha onde Maui está exilado. É possível considerar o primeiro portal a onda (rebentação) atravessada por Moana com a ajuda de Tala, mas depois de cruzar esse primeiro obstáculo não há nada mágico, diferente do encontro com o semideus Maui.


6 - Testes, Aliados e Inimigos



Esse item da Jornada do Herói é o que compõe a maior parte do miolo do filme (ou segundo ato): as batalhas com os piratas e com monstros, a conquista de Maui como aliado e como mentor de navegação.


7 – Aproximação



Juntamente com o item anterior, esse passo da Jornada está distribuído no segundo ato, sendo representado pelas vitórias do herói, principalmente aquela contra o monstro Tamatoa. O passo Aproximação também é chamado de Aproximação à Caverna Íntima e é interessante notar que o já citado monstro Tamatoa, não por coincidência, habita uma espécie de caverna.


8 - Provação



Depois de enfrentar pela primeira vez o monstro de lava Te Ka, Moana e Maui são derrotados. O anzol mágico de Maui está avariado e o semideus decide desistir da aventura, aconselhando Moana a fazer o mesmo e deixando-a sozinha no oceano. Moana chega à conclusão que tudo aquilo estava além de sua capacidade e cogita abandonar a sua busca pela cura de sua terra.


9 – Recompensa



Moana reencontra a avó e tem uma visão sobrenatural mesclando o passado e o que pode ser o futuro do seu povo. Seu ânimo é revigorado e a nossa heroína parte em busca do seu objetivo, reequilibrar a natureza e salvar o seu povo.


10 - O Caminho de Volta



Antes de voltar para o mundo comum, Moana deverá passar pelo seu último teste e enfrentar Te Ka.


11 - Ressurreição



Tudo o que foi aprendido por Moana na sua aventura é utilizado na batalha final. Te Fiti é trazida de volta ao seu lugar de direito e o equilíbrio é restabelecido.
A jovem mulher Moana não existe mais, sendo substituída pela líder amadurecida que guiará o seu povo rumo ao futuro.


12 - Regresso com o Elixir



Moana retorna, o seu povo está salvo. Ela quebrou paradigmas ditados pelo seu pai e estabelece uma nova liderança.


Pode haver diferentes interpretações dos momentos em que as fases da Jornada do Herói acontecem em Moana, principalmente nos itens 8, 9 e 10.
Devemos lembrar que a Jornada é uma diretriz, podendo ser adaptada e modificada conforme a história a ser contada. No entanto a estrutura básica pode ser claramente observada, mesmo que a ordem ou a divisão entre alguns passos não seja exatamente como descrito no manual.

A utilização da estrutura da Jornada do Herói não diminui em nada o mérito de uma produção e Moana é um bom exemplo disso. Na verdade o monomito fortalece a história e a torna de certa forma mítica, colocando os personagens da tela no mesmo patamar de figuras heroicas mitológicas que habitam o imaginário e inconsciente coletivo de todos. Além disso, reforça a identificação dos seres ficcionais com os seres de carne e osso, nós mesmos, que em vários momentos de nossas vidas estaremos vivenciando alguns dos estágios da Jornada do Herói.



Fabio Consiglio

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