Cinema e Psicanálise: a figura do psiquiatra no cinema
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Cartaz do filme As três faces de Eva (Nunnally Johnson, 1957) |
A compreensão psicanalítica vê o filme como uma metáfora do processo de constituição do sujeito. Podemos observar em vários filmes como isso ocorre na prática.
Nos estudos da psicologia no cinema o pioneiro foi o psicólogo Hugo Münsterberg na Universidade de Harvard, que publicou a sua monografia: A peça de cinema: um estudo psicológico em 1916, à fim de analisar a relação do cinema com o espectador, bem como, os sentimentos, as emoções, a memória e a imaginação.
Os cursos universitários dedicados ao estudo daquilo que não queriam chamar de moving pictures adotaram o nome de movie apenas. A promissora colaboração entre cinema e psicanálise foi objeto de especulação e partilham muitos materiais, sobretudo depois que a indústria do cinema aprendeu a usar alguns de seus recursos para explorar a mente humana e seus conflitos.
As imagens da tela têm similaridade com o mundo subjetivo do indivíduo e constantemente busca inspiração nos conflitos psíquicos e traumas contidos no inconsciente dos personagens.
O cinema e a Psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939) são dois adventos que surgiram no final do século XIX, quando Freud iniciou os seus trabalhos e publicou a sua obra A interpretação dos sonhos (1990).
A sua busca era a causa da dor psíquica e suas origens, comportamentos fora do padrão e outras patologias. Dessa forma, o médico vislumbra e formula a teoria da psicanálise e os desconfortos do corpo e da mente.
O psiquiatra também foi um dos primeiros a teorizar sobre a criação literária e os devaneios os escritores, ele tinha forte impressão das grandes obras de artistas como Leonardo da Vinci e invejava os artistas tanto quanto os escritores como Goethe e diz:
Meu interesse, após fazer um desvio de uma vida inteira
pelas ciências naturais, pela medicina e pela psicoterapia,
retorna aos problemas culturais que há muito me haviam
fascinado quando jovem mal desperto para o pensar.
(Neri, 2005, p. 54-57)
Segundo a autora, Freud salientou a importância da cultura e da estética no início da sua obra e com isso, nos demonstra o seu interesse pela cultura e em 1910 confessou que não se sentia à vontade na profissão médica e teria emitido o desejo de exercer a medicina para aprofundar os seus conhecimentos, a maneira pela qual o homem tinha se tornado o que ele é.
Mas, no fim da vida Freud recusou-se a colaborar com os estúdios de Hollywood para a realização de um filme sobre sua carreira temendo que o cinema pudesse banalizar as suas teorias.
No filme Freud, além da Alma (John Huston, 1962) ao tratar de uma jovem histérica e sexualmente reprimida o médico formula uma nova ética da escuta e demonstra que as mulheres se sentiram autorizadas pelo aparato psicanalítico ao fazer uso da fala e ser dona do próprio discurso.
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Freud além da Alma (John Huston, 1962) |
Porém, infelizmente, a figuras do psiquiatra nos filmes norte-americanos tornaram-se tema de paródia e de humor com a sua figura ligada à profusão de terapias alternativas, que estaria vinculado ao relaxamento dos costumes puritanos nos Estados Unidos.
O médico idoso do filme Quando fala o coração (Alfred Hitchcock, 1945) tipifica esta imagem de Freud. A angústia do personagem principal com pesadelos repetitivos, a mais famosa dessas sequências oníricas é a que foi produzida com a ajuda de Salvador Dalí no filme. Dalí como os artistas do Surrealismo conseguiram evocar paisagens onírica estranhas e surreais, cujas formas dos objetos em cena e do personagem são obscuras como as imagens dos sonhos, que derivam do trauma sofrido e suas experiências infantis.
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Quando fala o coração (Alfred Hitchcock, 1945) |
Alguns filmes apresentam a figura do médico vienense como arrogante, incompetente e pouco profissional como o personagem Dr. Judd do filme Sangue de Pantera (1942), de Jacques Turner.
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Elizabeth Russell (Sangue de Pantera, 1942) |
Os filmes clássicos contam histórias cujos recursos cinematográficos baseiam-se na causalidade e os atos dos personagens, que têm necessariamente sua fonte em algum lugar, na busca de um objetivo ou na reação ao ambiente.
De modo inverso, os filmes modernos a partir dos anos de 1960 em diante apresentam com frequência heróis desorientados, que não sabem o que fazer e vagueiam ao acaso sem reagir diretamente ao seu ambiente como James Dean em Juventude Transviada (Nicholas Ray, 1955).
O jovem interpretado por James Dean demonstra a sua relação tumultuada com a mãe.
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Juventude Transviada (Nicholas Ray, 1955) |
O cinema de Hollywood sempre se interessou em mostrar como funciona a mente humana e as doenças mentais como no filme As três faces de Eva (Nunnally Johnson, 1957).
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As três faces de Eva (Nunnally Johnson, 1957) |
As teorias femininas também contribuíram no esclarecimento das complexidades da mulher por meio do cinema como um lócus privilegiado para a discussão, a reflexão e o desafio era ter a capacidade de explorar os seus desejos mais comuns para que a plateia feminina que encontrava-se a sua face na tela como no filme Infâmia (William Wyler, 1961).
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Infâmia (William Wyler, 1961) |
Duas professoras são acusadas por uma estudante vingativa de terem um relacionamento, o que gera um escândalo. A história é mentirosa, mas uma delas realmente é apaixonada pela outra. A homossexualidade da personagem de Shirley McLaine é bem mais clara, embora haja bastante timidez em tocar o assunto. A maioria dos filmes hollywoodianos revelam as mulheres e suas neuroses quando elas abandonam o papel da mulher sofrida, incapacitada e subordinada aos homens.
Segundo a pesquisadora E. Ann Kaplan (1995), em qualquer época haverá muitas imagens do psiquiatra masculino no cinema e ela cita o terapeuta engajado no filme Gente como a Gente (1980).
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Timothy Hutton e Mary Tyler Moore em Gente como a gente (1980) |
A morte prematura de um dos filhos de uma família de classe média alta acaba afetando a todos, principalmente o irmão da vítima, que se considera responsável pelo ocorrido e está em tratamento psiquiátrico. No entanto, a mãe faz questão de manter as aparências, para não dar a entender que a unidade familiar foi quebrada.
Edgar Morin cita o cineasta Jean Epstein (1897-1953):
O cinema é psíquico e as salas são autênticos laboratórios mentais,
onde a partir de um feixe luminoso, se concretiza um psiquismo coletivo (...).
O filme é a junção de dois psiquismos que se acham incorporados
na película a do próprio espectador (...).
O cineasta não só elabora a percepção do real como também segrega o imaginário.
Autêntico robô do imaginário, o cinema imagina por mim, imagina em meu lugar e,
ao mesmo tempo fora de mim com mais intensa e precisa imaginação.
(Morin, 1997, p. 230)
O espectador vai extrair do cinema as experiências das personagens e via projeção-identificação ele enfrenta o próprio medo. O ator viabiliza o espectador a entrar em cena junto com o personagem como se fosse condensado numa única pessoa.
Os filmes funcionam como veículo para estabelecer imagens que costumamos identificar ou projetar que é o fenômeno da projeção-identificação. Este fenômeno permeia o universo do cinema, sendo que, a afetividade decorrente deste processo determina a magia, ou seja, a magia transmuta a afetividade e visa e versa.
A projeção é um processo universal e multiforme. As nossas necessidades, aspirações, desejos, obsessões, receios, projetam-se, não só no vácuo em sonhos e imaginação, mas também sobre todas as coisas e todos os seres.
Na identificação, o sujeito em vez de projetar no mundo, absorve-o. A identificação “incorpora o meio ambiente no próprio ‘eu’ e integra-o afetivamente”, segundo Xavier. As participações afetivas é o reino das projeções-identificações, que ocorre no plano mental e afetivo. (Xavier, 1983, p. 145-148)
Desta forma, as participações afetivas ocorrem neste procedimento das projeções-identificações que todos nós estamos submetidos no escurinho do cinema e sem se dar conta de que fomos sequestrados pelo filme.
Quando os nossos sonhos, os nossos estados subjetivos, se desligam de nós para fazerem corpo com o mundo, dá-se a magia:
(....) O universo mágico é a visão subjetiva que se crê real e subjetiva.
Segundo Epstein, para dissolver as resistências diurnas e acentuar todo
o fascínio da sombra (...) o espectador poderá ficar assim, meio estendido,
numa atitude propícia à descontração e favorável ao devaneio.
(Xavier, 1983, p. 147-155)
O filme, mais do que qualquer outro meio de comunicação, tem hoje uma função catalisadora e promove diálogos, ainda que imaginários, sobre nossa própria vida. A participação imaginária do espectador junto ao filme provém das suas próprias projeções e identificações, aliadas à percepção do filme.
A linguagem da psicologia se aproxima do cinema e muitas vezes se cruzam na medida em que tratam do imaginário, do amor, dos sonhos, das projeções e identificações. Os filmes refletem as produções do imaginário do público junto ao filme a partir dos fenômenos e projeção/identificação remete as experiências reais e imaginárias do espectador.
No cinema hollywoodiano, o papel da mãe na maioria dos filmes exibe essa visão simbólica do materno e a sexualidade é quase excluída:
(...) a sua sexualidade desaparece e ela não pode ser fetichizada no cinema,
porque torna a representação da figura materna muito problemática (...).
A figura da mãe oferece um meio possível de se abrir caminho através do discurso patriarcal,
uma vez que, como a crítica já percebeu a cultura dominante não se apropriou inteiramente dessa figura.
Mas, essa é uma área problemática onde ainda há muito a ser feito.
(Kaplan, 1995, p. 29- 85)
Segundo a autora americana, o papel da mulher na família não é fetichizada no cinema, mas pode cruzar com as imagens fabricadas pelo star system americano e as imagens dessas divas em atividades triviais e domésticas, o que confirma a presença da estrela na tela dando uma ideia de permanência.
O filme Sonata de outono (Bergman, 1978) uma pianista renomada se surpreende ao encontrar a filha com problemas mentais, após o seu retorno dos palcos. A tensão cresce no filme até que ambas decidem jogar as cartas na mesa. O cinema ajuda os personagens a se explicar e a revelar seus segredos.
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Liv Ullmann e Ingrid Bergman |
À medida que a revolução freudiana criava raízes, porém, a zona de conflito mais fascinante transferiu-se para o interior das personagens e os filmes se viram diante de um problema. A psique não é visível. Se as batalhas mais interessantes se travam no coração e na mente, o que fazer? E Bergman desenvolveu o seu estilo para dar conta do interior humano, conforme explica Woody Allen no prefácio do livro A lanterna mágica – autobiografia de Ingmar Bergman (2013).
Referência bibliográfica
BERGMAN, Ingmar. Lanterna Mágica – uma autobiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2013.KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Relógio D`Água, 1997.
NÉRI, Regina. A psicanálise e o feminino: um horizonte da modernidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. São Paulo: Graal, 1983.
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