Em Cartaz - Nós

Nós (2019)

Us




Um doppelgänger, termo originado no folclore germânico, é uma cópia idêntica de uma pessoa, uma duplicata, que tenta imitar o original. Segundo algumas dessas lendas, todos os seres humanos têm o seu próprio doppelgänger. Nós (2019), dirigido por Jordan Peele do excelente Corra! (2017), leva esse conceito ao seu limite ao contar a história de uma família que é atormentada por cópias que querem tomar o seu lugar.
O conceito não é novo – rapidamente nos lembramos de Vampiros de Almas (1956) e suas inúmeras refilmagens – mas a abordagem de Peele traz um frescor que transcende a cópia ou uma simples reimaginação. O terror é montado lentamente, com um prólogo mais movimentado pela necessidade de fundamentar a história, seguido de um primeiro ato aonde os elementos vão se empilhando de forma a aumentar a tensão. Não por coincidência, o garoto Jason (Evan Alex), filho mais novo da protagonista Adelaide Wilson (Lupita Nyong'o), usa em boa parte do início do filme uma camiseta do filme Tubarão (1975), uma homenagem ao formato da narrativa do clássico de Spielberg que aqui também é utilizado – o suspense crescendo de forma gradual e evitando-se mostrar por completo a ameaça real, ao menos no início da projeção.
A riqueza de significados é um dos grandes trunfos de Nós. Se observarmos com cuidado, o roteiro não faz muito sentido – em quantos filmes de horror a história realmente faz sentido? – mas tudo deve ser visto de forma alegórica. O que seriam as duplicatas das pessoas que começam a surgir e a tomar o lugar dos originais? Seriam versões pioradas de nós mesmos, como as personalidades deturpadas que vemos nas redes sociais? Poderiam ser uma involução, representada pela linguagem primitiva dos doppelgängers do filme que apenas emitem grunhidos, conforme previsto por Saramago em um comentário sobre o Twitter: “Os tais 140 caracteres refletem algo que já conhecíamos: a tendência para o monossílabo como forma de comunicação. De degrau em degrau, vamos descendo até o grunhido”. Ou ainda uma versão dos infames incels (celibatários involuntários), saindo das catacumbas de fóruns da internet para assassinar pessoas covardemente, apenas para externar a sua incapacidade de se relacionar e criar qualquer tipo de empatia.
Nós cumpre a função de divertir como bom filme de terror e faz pensar para onde estamos caminhando como sociedade. Como em todo bom filme de suspense/horror não poderia faltar o plot twist final que, no caso de Nós, coroa a obra com um final que faz todo o sentido e até ajuda a tapar alguns buracos do roteiro. Durante o filme, várias vezes é mostrado um cartaz onde está escrito Jeremias 11:11; o citado versículo do Velho Testamento diz o seguinte: “Por isso, assim diz o Senhor: ‘Trarei sobre eles uma desgraça da qual não poderão escapar. Ainda que venham a clamar a mim, eu não os ouvirei’ ”. Essa tal desgraça já foi dita como sendo a hecatombe nuclear e mais recentemente o aquecimento global. Hoje em dia, a danação da qual não poderemos escapar talvez sejam as redes sociais.


Nota: 4/5



Fabio Consiglio

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