A História dos Ossos: a presença do sensorial mediatizando os momentos da escritura de Alberto Martins

A História dos Ossos:
a presença do sensorial mediatizando os momentos da escritura de Alberto Martins -
crítica literária


Rosângela Canassa

1ª. história

Na primeira novela intitulada O cão no sótão, integra dois personagens, o narrador e seu irmão, que dormia e trabalhava num cartório, trancafiado e desestabilizado emocionalmente. O autor descreve-o como magro, afundados no corpo cuja pele branca brilhava de suor. A sua obsessão era escrever uma “única página verdadeiramente viva”, a ideia o dominava de forma doentiamente. Ele buscava encontrar nos manuscritos possíveis erros que deveriam ser corrigidos como se fossem os seus. No prólogo, o narrador comenta: “naqueles dias em que o nome do pai era impronunciável entre as nossas paredes”. Denota-se aqui, que o pai não morava com eles ou já tinha morrido, não fica claro no texto onde o pai se encontra. O nome do pai parece proibido pronunciar, cujo motivo o autor não explica. O irmão diz ao cão: “Anda, cão, esquece teu dono e deixa as coisas como estão”. A metáfora refere-se como se ele dissesse a si mesmo: “esqueça o pai e deixe as coisas como estão”, infere-se aqui, que o pai deixou um profundo vazio, que traduz a impossibilidade de estar com o outro. A sua impotência diante dos afetos do pai ausente, o rapaz busca na literatura e as linhas preenchem seu vazio interior.


2ª. história

A segunda novela que dá título ao volume A história dos ossos conta a história de um homem que recebe a notícia da infiltração no túmulo do seu pai, num cemitério localizado em uma cidade, que não foi denominada pelo autor. O piso havia cedido e a laje de cima ameaçava a tombar. Logo se tomou uma providência e o homem compareceu ao cemitério para resgatar os despojos do morto e transferi-los para outro lugar. O terreno era da prefeitura e que foi arrendado para armazenar containers. Além da história contada, as ideias são reveladas por meio de uma linguagem poética, que mostra a narrativa e as imagens que o texto evoca, o simétrico, o estático, que aparecem nas formas geométricas da cidade repleta de cores e luzes quando o autor descreve: “ a escuridão do armazém, varando as telhas em linhas retas, a luz recortava tesouras...”. O autor/narrador propõe uma leitura poética de uma cidade e vai construindo como se tivesse uma câmera nas mãos, cujas cenas contém paisagens tristes como o cemitério, as ruas com guias esburacadas e a areia cinza da praia, que funciona como depósito de lixo como bitucas de cigarro.
O mau cheiro de ácido de esgoto que exala nos leva a penetrar naquela cidade e a conviver com o narrador vivenciando as mesmas experiências, que traduzem seu mundo num diálogo com a história que conta. A poesia mediatiza todos os momentos da escritura desta novela e também desperta a vivência do sensorial imediato, que dá a sensação de odor. que impregna as narinas do leitor.
Os barulhos são descritos por meio das águas “correndo nos canos, caindo nos pratos, transbordando nas pias, sumindo nos ralos”, que metaforiza os ecos internos e desesperados do narrador em busca de preencher um vazio que corre em suas veias, como os às águas que correm pelos canos. As experiências vividas pelo autor/narrador tornaram-se memórias de infância, que se misturam com a poesia e as sensações imediatas que o texto provoca.
As emoções são reveladas com economia e são expostas somente nos momentos em que o autor/narrador lembra da infância, da família e que por fim, se dá num vazio. As pessoas são um emaranhado de figuras imprecisas, que vivem no ócio, na penumbra da casa como a figura do pai que o narrador descreve como severo e cinza.
A cidade é um útero vazio, no qual ele tenta penetrar como se quisesse voltar ao paraíso perdido. Mas, contrariamente a um paraíso, a cidade é fétida, preenchida com figuras indefinidas que vivem em sua memória e que se transformaram apenas em fragmentos do passado. Agora restam apenas, os ossos do pai, envoltos num saco de plástico preto e nada mais.
A presença do clima erótico surge quando o autor/narrador encontra a moça no bar, tomando seu refrigerante. Ele a descreve como o corpo magro, cheio de arestas, uma figura ambígua, entre a inocência de uma jovem de 17 anos, com a mistura de uma prostituta aposentada, que não provoca nem o proibido, nem o erótico, não desperta o cansaço. Ele sente uma vontade louca de transar, mas é uma vontade mecânica, seca, sem a umidade que a sensação do desejo provoca no corpo.
A tendência do autor/narrador é de voltar seu olhar para as extensões horizontais e verticais da cidade, tomando a coragem de entrar nos lugares sujos, mau cheirosos, como a água que sai dos canais. A partir destas categorias visuais e sonoras, o autor/narrador é o sujeito das ações, criando as imagens, os lugares, os cheiros, os sons, que provocam a vivência sensorial imediata do leitor. O narrador percebe o mundo a partir das constatações imediatas, tentando segurar o instante, que se passa e eternizá-lo em sua memória, como uma fotografia amarelada guardada numa gaveta.
Ele busca encontrar um lugar para depositar os ossos do pai e se encontra naquela cidade e por meio dos restos mortais, ele pode achar o seu começo e tudo se inicia novamente, com seu renascimento para a vida ou não.


Referência bibliográfica:
MARTINS, Alberto. A história dos ossos. São Paulo: Editora 34, 2005.

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